A pomposa denominação do “Acordo para aquisição de suprimentos e prestação recíproca de serviços (US -UY-02)” viabiliza uma base militar dos Estados Unidos no vizinho Uruguai.

Uruguai pátio traseiro (Quintal)

O nome interminável do acordo esconde deliberadamente o único essencial: abrem-se as portas para a instalação de uma base militar estadunidense no Uruguai, cumprindo uma antiga aspiração da potência norte-americana. O acordo foi aprovado pela Comissão de Assuntos Internacionais do Senado, na sessão de 14 de junho deste ano. A bancada da Frente Ampla resolveu por unanimidade não votar o projeto quando ele tramitar no plenário do Senado.

Desde que o presidente Luis Lacalle Pou enviou o texto ao Parlamento, em 3 de agosto de 2022, reiterando o que fora apresentado, mas não aprovado em 2012 e retomando o de 2000, voltou-se a discutir o significado do Acordo Logístico com os Estados Unidos, embora com pouquíssima divulgação pública. Ao contrário de qualquer leitura atenta do texto, o governo insiste que ele não implica na autorização de uma base militar.

Interpretações

No ano passado, o agora ex-senador Gustavo Penadés declarou (em entrevista a Lucía Barros, da Sputnik) que o acordo permitiria coisas que já estavam sendo feitas de fato e lembrou que “no passado, os Estados Unidos ajudaram a construir uma importante policlínica no bairro Santa Catalina”. O ministro da Defesa, Javier Garcia, disse há alguns dias na sessão da Comissão de Defesa que “se é preciso construir um hangar ou um porto,” seria possível “contar com o apoio para construí-los”.

Não falou de policlínicas ou hospitais, como Penadés. Mas, ao dar exemplos, mencionou que nas “operações de manutenção da paz (…) os Estados Unidos poderiam nos auxiliar na base uruguaia em situações que possam ocorrer no Congo ou nas colinas de Golã”.

As duas interpretações são contraditórias. Penadés falou de construções não militares em território uruguaio, enquanto García se referiu a construções militares fora do território nacional. Nenhuma das duas interpretações é convincente e elas não estão relacionadas com a lógica do Acordo.

Além disso, mesmo que os integrantes do governo aceitem hoje qualquer uma dessas interpretações do texto, nada os impede de mudar de opinião depois de aprovado. Já mostraram que têm a “marcha à ré” bem lubrificada. Por outro lado, qualquer governo futuro, além do atual, poderia interpretar posteriormente o texto do Acordo como uma autorização legal para a construção de uma base militar dos Estados Unidos no Uruguai.

Sem vestígios

O subsecretário das Relações Exteriores, o colorado Nicolás Albertoni, lembrou que “70 anos se passaram desde o primeiro acordo de cooperação de defesa entre os Estados Unidos e o Uruguai, ratificado em 1953”. Este acordo militar, ainda vigente, foi rejeitado por Luis Alberto de Herrera e os legisladores que o apoiavam naquela época longínqua, ao contrário dos atuais lacallistas-herreristas. O acordo submetido à discussão no Parlamento foi precedido por outro equivalente, que vigorou entre 2000 e 2010. Foi assinado durante o governo colorado de Jorge Batlle, pelo ministro da Defesa, Luis Brezzo. Não há vestígios, até agora, de que este acordo tenha passado pelo Parlamento. Não apareceu seu trâmite parlamentar, nem sua aprovação, nem mesmo seu envio ao Poder Legislativo. Seria muito grave a confirmação de que não passou pelas Casas Legislativas. Outra caixa de Pandora poderia ser aberta.

“Segurança essencial”

A orientação de Batlle, um pan-americanista e político pró Estados Unidos, manteve-se fiel às tradições mais firmes de sua família e de seu Partido Colorado. Um acordo militar antecipou a posição a favor do TLC do Chile com os Estados Unidos como um exemplo a seguir. Mesmo que Batlle não tenha conseguido um TLC, assinou um Tratado de Proteção aos Investimentos que, apesar de seu suposto caráter meramente econômico, incluía a cláusula militar de “segurança essencial”. O texto assinado pelo governo Batlle foi descartado, mas foi substituído por outro equivalente, ainda em vigor. Ainda não houve discussão pública sobre a nefasta cláusula 18 do Tratado de Proteção aos Investimentos que se refere à segurança essencial, isto é, à chamada “segurança nacional” dos Estados Unidos.

Hoje, como em meados do século XX, ou no ano 2000, os acordos militares e econômicos com o poder hegemônico dos Estados Unidos tentam andar de mãos dadas. Recentemente, alguns senadores americanos, tanto democratas como republicanos, apresentaram ao Congresso um projeto de lei que ofereceria preferências comerciais unilaterais ao Uruguai, semelhantes às recebidas pelos países caribenhos.

Ofensiva

O recente encontro de Lacalle Pou com Joe Biden, o alinhamento automático do governo uruguaio com a política externa de Washington, a tentativa frustrada de desmantelar o Mercosul através de acordos bilaterais, junto com a mencionada proposta dos congressistas, assim como o acordo logístico, são alguns dos múltiplos sinais da contraofensiva norte-americana na América Latina e especialmente no Uruguai para conter o avanço chinês.

Em meio à guerra na Ucrânia que opõe a OTAN à Rússia, em que se manifestam simultaneamente conflitos intercapitalistas e interimperialistas e uma tentativa de mudança do eixo do poder hegemônico global, a mera possibilidade de instalação de uma base militar dos Estados Unidos no Uruguai deveria causar o maior alarme. Isto pode nos envolver em um conflito devastador.

Passados 50 anos do golpe de Estado de 1973, convém recordar a ingerência da embaixada dos Estados Unidos no apoio à ditadura militar e as profundas feridas, ainda abertas, que aqueles tempos deixaram.
Em homenagem às vítimas, deveríamos dizer “nunca mais” à intervenção imperialista no Uruguai. (Publicado no Rel Uita em 29/06/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Tradução: Celia Bartone

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