A roda da história gira e por vezes se repete

O historiador alemão Joachim Fest escreveu uma respeitada e volumosa biografia de Adolf Hitler, lançada em 1973. Mesmo sendo um leitor até certo ponto ávido daquele período histórico absolutamente perturbador, com muitos de seus personagens principais saídos do último círculo do inferno – especialmente o biografado em questão –, apenas recentemente ouvi falar do livro, pela indicação de um amigo, que o emprestou para leitura.

Estou lendo os dois volumes, que somam mais de mil páginas, e estou constatando que o livro merece todos os elogios que fazem a ele. Mas estou lendo (no gerúndio), logo, não vou escrever sobre um livro que não terminei, mas posso narrar um certo espanto pelo que já li, por ter constatado semelhanças com os tempos atuais que vão além das causas macro da ascensão do fascismo na primeira metade do século XX, questões que seriam consideradas menores se os tempos fossem outros.

Quando falamos das extremas direitas atuais, mesmo com as diferenças entre elas, logo nos lembramos de fake news, construção de realidades paralelas, lavagem cerebral coletiva, nostalgia de um passado que nunca existiu, negacionismo científico, exacerbação do autoritarismo, moralismo sexual, entre outros males gerados por uma irracionalidade que impede o debate, interdita a democracia e permeia todas as classes sociais.

O espanto com certas pautas e crenças da extrema direita nos faz acreditar (ao menos muitos de nós) que enfrentamos um fenômeno novo na história, um momento peculiar, sem paralelos, mas não é, nunca é, acredito.

Quem lê sobre o surgimento e o crescimento do partido nazista na Alemanha sabe que seus adeptos usaram e abusaram de mentiras históricas, culturais, raciais, mas normalmente trata como se os nazistas as usassem como “mera propaganda”, desconsiderando que eles, de fato, acreditavam naquilo, assim como muitos na Alemanha e na Europa também, ainda que sem filiação ao partido ou a movimentos políticos assemelhados em outros países.

Joachim Fest não é o único historiador a tratar do caldo de cultura no qual estava imersa a Alemanha nas primeiras décadas do século XX, antes mesmo de os nazistas ganharem relevância política. Mas, na biografia de Hitler, ele está construindo uma explicação do pensamento e das circunstâncias do biografado, então, mais do que outros historiadores que já li, se debruça sobre esses fatores, tratando-os com uma relevância maior, a ponto de passar páginas sem citar Hitler, apenas seu entorno.

Além dos aspectos culturais mais formativos, macros, Fest adentra em detalhes de credos e valores que espantam pelas semelhanças com os tempos atuais. Peço desculpas, mas citarei trechos do livro, os quais explicam do que estou falando com muito mais competência:

  • No entanto, a classe média, em sua grande maioria, sempre tinha se considerado “representante e guardiã da moral comum” e encarava toda crítica feita a esta como uma ameaça pessoal. Também considerava intolerável o fato de só se ver no casamento uma simples formalidade administrativa, como fazia a União Soviética em seus primórdios. Condenava com a mesma veemência a “teoria do copo d’água”, segundo a qual o desejo sexual não era diferente da sede, isto é, uma necessidade elementar que era preciso satisfazer sem mais rodeios. O foxtrot e os vestidos curtos, a corrida em busca do prazer “na cloaca do Reich que era Berlim”, (…) ou o tipo de homem da época (“o dançarino de capote impermeável, calçando sapatos de sola de borracha laminada e vestindo calças Charleston, os cabelos alisados com gomalina e bem esticados para trás”) chocavam a maior parte da opinião pública com uma intensidade que se um cronista contemporâneo se desse ao trabalho de analisar retrospectivamente custaria muito a entender hoje em dia.
    As peças teatrais dos anos 1920 abordavam o tema do parricídio, do incesto ou do crime comum e se arriscavam a provocações (…) Mas o que passara até ali como produto dos exageros não conformistas de um punhado de artistas originais ganhou um sentido diferente na perspectiva do dilúvio de imagens relativas ao tumulto, à revolução e à dissolução generalizada; e se viu nessas manifestações uma declaração de guerra à concepção europeia tradicional do homem. Os fauvistas, o grupo Blaue Reiter, o grupo Die Brucke, ou o movimento dadaísta foram considerados uma ameaça tão grave como a própria revolução, e a expressão popular Kulturbolchevismus consagrou essa noção de uma ligação interior entre os dois fenômenos. (…)
    A arte moderna é uma “impostura caótica”, definia um dos julgamentos típicos de então, e todos esses sintomas terminaram por gerar uma angústia difusa e complexa, que o pessimismo em moda na época resumiu na fórmula “declínio do Ocidente”. (…)
    Os arautos desse mal-estar desprezavam o progresso e se proclamavam, não sem altivez, em atraso com relação ao mundo de que se distanciavam, e eram sob todos os pontos de vista uns contempladores inatuais que, como escreveu Lagarde, aspiravam a ver uma Alemanha que jamais existira e possivelmente nunca existiria. (…)
    Em seus ensaios e artigos irracionais, por vezes sutis, atacavam a Bolsa e a urbanização, a vacina obrigatória, a economia mundial e a ciência positiva, e também o espírito “comunal” e as primeiras tentativas de voo. (…) Arvorando-se em “profetas da tradição ofendida”, faziam ardentes votos de que surgisse o dia em que se poria fim à obra de destruição e “faria ressurgir das ondas as antigas divindades”. (…)
    Os valores que opunham à era moderna compreendiam o natural, a arte, a terra, o passado, a aristocracia e o amor à morte, assim como o privilégio do mando devolvido à forte personalidade cesarista. (…)
    Rembrandt als Erzieher, de Julius Langbehn, o livro mais famoso que reflete essa tendência da época, obteve um sucesso espetacular ao ser lançado em 1890 e mereceu quarenta edições em menos de dois anos. A ampla repercussão alcançada por esse documento excêntrico, composto a uma só vez de pânico, antimodernismo e delírio missionário nacionalista (…)
    Se esses sentimentos de hostilidade à civilização foram associados assim ao nacionalismo daquele tempo, o eco que encontraram, tanto como as teorias do darwinismo social e do racismo, nas ideias antidemocráticas teve consequências talvez ainda mais importantes: revelaram o declínio da sociedade liberal do Ocidente, que baseava sua organização política nos princípios do iluminismo e da Revolução Francesa. (…)
    Os ideais alemães de fidelidade, de graça divina, de amor à pátria, declarava um dos numerosos panfletos da época, “tinham sido sufocados sem piedade durante as tempestades da revolução e do período consecutivo. Tinham sido substituídos pela democracia, o nudismo, o naturalismo descontrolado, a concubinagem.” (Fest. Joachim, Hitler, p. 128-34, Editora Nova Fronteira)

Tem muito mais. Contudo, acredito que esses trechos mostram que eles tinham muitos Olavo de Carvalho e Steve Bannon, tinham o “marxismo cultural” (o Kulturbolchevismus, sendo que o deles era, ao menos, mais real), o anarcocapitalismo, que é outro nome do darwinismo social, então em voga, o racismo, a xenofobia, o sentimento de decaimento do mundo, o moralismo nos costumes, a identificação e condenação das “pessoas diferentes”, a guerra às artes, à ciência… enfim, estava ali o que vemos hoje, ainda que com outra roupagem.

A guerra à civilização tal como ela se apresentava, o caos cognitivo, o pessimismo como regra interpretativa do mundo, a negação de consensos científicos, o ódio à democracia, à esquerda, o desejo de retorno a um passado idealizado – tudo estava ali.

Então, o que vivemos hoje não é único ou peculiar, como muitas vezes acreditamos. Certamente não precisamos ter mais de 80 milhões de mortos, como tivemos até o fim da Segunda Guerra, para superarmos esse novo delírio coletivo reacionário (que não ficou naquele tempo circunscrito à Alemanha, óbvio), mas é bom que todos saibam, especialmente os que se dizem liberais, o que pode acontecer quando não se identifica e combate quem carrega a tragédia de um tempo histórico.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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