Joca estava morto. Bem morto. Tinha a cara maquiada de quem morreu dormindo ou a de quem parece estar dormindo, apesar do caixão entupido de flores baratas não deixar dúvidas de que estava morto.

Havia pouca gente no velório. Só os poucos amigos de sempre. Muito diferente do velório da capela ao lado, cheia de gente. A maioria sorridente. Uns poucos tristes. Os que realmente se entristecem com a morte de alguém sempre são poucos. Não importa a fama, poder ou riqueza. Afeto verdadeiro é coisa escassa neste mundo, distribuído aos pequenos bocados a cada um.

Certamente, há aqueles que nem mesmo uns poucos se entristecem com sua morte. Gente sem amigos, sem afeto que não o de si para consigo. Não que a vida não lhes tenha oferecido uma ou outra pessoa digna de se chamar de amiga, mas um a um são magoados e afastados por estes solitários convictos de que serem amados lhes é coisa insuportável.

Mas esta não era a situação nem de Joca e nem do vizinho de capela mortuária. Iguais no cultivo de poucos, mas verdadeiros amores. Mas desiguais em tudo o mais da vida que vai além dos amores. Dinheiro, cultura, fama. Tudo isso sobrava ao vizinho morto de Joca. Assim como sobrava gente em seu velório. A mesma gente que não faz falta no velório de Joca.

O vizinho tinha carro e motorista. Joca era motorista de carro dos outros. Terminado o leva e traz dos patrões, voltava para casa de ônibus. Os patrões diziam que Joca era quase da família, porque era docilmente servil. Nenhum patrão apareceu no velório de Joca. Os empregados estavam, por obrigação, no velório do vizinho. A diferença é só essa. A obrigação.

O dinheiro e tudo o mais que tanto se busca e que pode ser calculado em dinheiro cria obrigações. Não obrigações de verdade, como as que obrigam os empregados a estarem naquele velório, mas uma obrigação dos próprios sentimentos. Alguns, gratos pela grana recebida, sentem-se obrigados a estarem lá para mostrarem que, ao menos agora, estavam lá. Outros, porque suas vidas continuam e a grana do morto continuará nas mãos dos que lá estão tristes.

Os tristes, também estão lá por obrigação. Mas uma obrigação diferente. Obrigação dos afetos. Coisa daquele arrebatamento dos nossos sentidos que nos empurram com corpo e alma para algum lugar que, muitas vezes, a depender só do corpo ou só da alma, jamais nos arriscaríamos buscá-lo.

Até o morto está lá por obrigação. A de ser enterrado para não apodrecer em qualquer lugar.

Estranha sociedade que mata a vida com suas obrigações de pagar, de fazer, de deixar de fazer, de pagar de novo, de estar ali e não estar acolá, de suportar as injustiças sem nem mesmo poder fazer cara feia. Assim vai se desvivendo em obrigações até que começa a viver só pela obrigação de se viver.

Joca foi sepultado às 16 horas de um dia de primavera. Por meses após seu enterro, seu celular chamou com ofertas de promoções imperdíveis, empréstimos e cobranças.

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Ilustração: Mihai Cauli
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