CTB/02-2019

A cena política tem transcorrido cada vez mais apartada da dinâmica real da transição econômica a moldar a nova sociedade de serviços no Brasil. Desde 1990, com a forma passiva e subordinada de inserção do país na globalização imposta pelo receituário neoliberal, a sociedade industrial vem sendo drástica e brutalmente desconstruída.

Resulta disso o acentuado descrédito das instituições herdadas do passado que, embora persistam em funcionar, não mais correspondem às necessidades dos sujeitos que emergem da sociedade de serviços. Em geral, o cotidiano de um mundo real que dificilmente encontra eco na cena política nacional.

Em síntese, a cena política relaciona duas dimensões fundamentais: a social (estrutura e dinâmica da sociedade) e a pública, que expressa a forma e conteúdo das manifestações da sociedade. Assim, o cotidiano e a trajetória dos indivíduos e grupos sociais definidos pela materialidade econômica podem ou não ter expressão e manifestação pública a serem mediadas, ou não, pela cena política.

Na vigência da sociedade urbana e industrial entre as décadas de 1930 e 1980, por exemplo, o trabalho detinha a centralidade no interior do projeto de integração econômica, cultural, social e política do país, o que foi uma imensa novidade em oposição à antiga e longeva sociedade agrária que por mais de quatro séculos se fundamentou na desvalorização do trabalho, a ser realizado, na maioria das vezes, por pessoas consideradas inferiores e descartadas pela elite dominante da época.

Assim, a perspectiva integradora das massas empobrecidas sobrantes do agrarismo, constituída durante a sociedade industrial, contou com dois eixos estruturantes principais. O primeiro, de natureza econômica, esteve encaixado no projeto de industrialização nacional que se mostrou capaz de mobilizar intensamente o sistema produtivo e a urbanização, o que ampliou, assim, o mercado legal de trabalho, especialmente o assalariamento formal, regulador da cidadania e identidade laboral.

Nesse sentido, o crescimento econômico foi, ao integrar nacionalmente e fortalecer o mercado de trabalho, o mecanismo especial de transformação da massa social excluída de empobrecidos proveniente da migração do campo para as cidades em uma ampla e complexa classe trabalhadora portadora de direitos sociais e trabalhistas, justiça do trabalho e representação sindical e de partido político. Tudo isso em oposição ao preconceito da vagabundagem, bandidagem e ocupações ilegais que se distanciaram da centralidade do trabalho promotora de identidade moral individual e coletiva do trabalhador e do próprio reconhecimento, dignidade e virtude na representação social e política.

O segundo eixo estruturador da integração social firmou-se enquanto charme do capitalismo brasileiro assentado na significativa mola propulsora da mobilidade social ascendente. Assim, imensas massas de famílias miseráveis originárias do campo, analfabetas e destituídas praticamente de tudo, tornaram-se reconhecidas como eleitoras e pertencentes ao processo de modernização do padrão de consumo material e cultural da sociedade urbana e industrial.

Diante de expectativas crescentes em relação ao futuro que se materializava por expressiva expansão econômica a promover empregos em grandes escalas, o cotidiano da classe trabalhadora se encaixava na perspectiva da ascensão social de médio e longo prazo. Da mesma forma, a predominância do catolicismo contribuiu para o estabelecimento das estratégias familiares para a incorporação de melhorias coletivas no médio e longo prazo entre os seus membros.

Esse movimento estrutural de coesão social centrado no trabalho portador de direitos e identidades começou a ruir com a destruição da sociedade industrial posta em marcha com o neoliberalismo no Brasil. O vácuo da desindustrialização dilaceradora dos empregos assalariados de classe média e do operariado industrial inchou o setor terciário, com situações quase indecifráveis de trabalho nos mercados tanto legais como ilegais de produção e ocupação.

No curso da transição para a sociedade de serviços constata-se o desmoronamento da identidade moral individual e coletiva do trabalho, bem como a perda do reconhecimento, dignidade e virtude na representação social e política. O abandono do vigor econômico, desestruturando o mercado formal de trabalho incentiva, simultaneamente, a expansão da produção e ocupação dos mercados ilegais sob o controle do banditismo, milícias e crime organizado regidos cada vez mais pela lógica da violência.

O enfraquecimento do assalariamento, sobretudo da carteira do trabalho, faz valer cada vez mais os projetos individuais de ascensão social, identificados fundamentalmente pelo dinheiro, não mais pelo trabalho portador de identidade, virtude e reconhecimento social e político.

Na explosão do desemprego e difusão de ocupações precárias e desprestigiadas de futuro, a constituição de imensas massas empobrecidas sobrantes dos escombros da sociedade industrial associa a sobrevivência do cotidiano à emergência das doações, projetos sociais, programas de transferências de renda, filantropia e maior ocupação e renda nos mercados ilegais – resumidamente, um novo regime de poder, produzindo ordem social, proteção, ocupação, atividades culturais, renda e status integrador que passa pelo crime nos principais centros urbanos do país.

A ressignificação do cotidiano dos novos sujeitos da sociedade de serviços transcorre em meio ao descolamento da cena política reveladora tanto da descrença na política como da busca por saídas individuais e imediatas. A conversão da vida que permita alcançar mais rapidamente a ascensão econômica e o reconhecimento social compreende estratégias que possibilitem minimamente sobreviver e conta com ações ampliadas de novas e velhas igrejas a motivarem opções de curto prazo, em geral frustrantes pela materialidade da decadência econômica.

Assim, a urgência por resultados concretos e a expectativa decrescente das possibilidades de futuro promissor se difundem no capitalismo de modelo híbrido, não mais assentado fundamentalmente nos setores público e privado. Ascende, sim, pelo hibridismo da produção e ocupação entre os mercados legais e ilegais no Brasil.

O neoliberalismo gera exércitos de não empregáveis impostos pela contida produção dos mercados legais. Sem alternativa concreta na cena política, a massa sobrante dos requisitos da acumulação de capital estagnada, manifesta-se publicamente através da transferência motivada pelas alternativas ofertadas de ocupação e renda dos mercados ilegais em ascensão no Brasil.

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