UComo a cobertura facial reproduz nossa cultura política

Em fevereiro de 2020 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde a emergência internacional pela difusão do Sars-Cov-2, vírus causador de uma infecção respiratória grave e em muitos casos mortal, denominada de Covid-19.

O desconhecimento das formas de transmissão do vírus, a inexistência de protocolos para seu tratamento e a preocupação com seu controle, em um cenário em que a maioria dos países do mundo não possuía nem infraestrutura, equipamentos de proteção ou serviços de saúde capazes de atender toda a população afetada gerou reações caóticas a princípio.

Isto levou, nos primeiros meses, a experiências com diferentes tratamentos, orientações contraditórias sobre o uso de máscaras, luvas e higienização de superfícies. A forma mais confiável de evitar a contaminação era a defesa do distanciamento, com o fechamento de escolas, comércios e serviços públicos. A vida cotidiana passou a ser vivida na internet.

A efetividade dos tratamentos e das medidas de proteção saiu dos debates acadêmicos entre os profissionais da saúde para se tornar base dos discursos políticos em alguns países, como Brasil, Estados Unidos, França e Reino Unido, como elemento de identidade de governantes e oposição e seus apoiadores.

Assim, permanecer em casa conforme recomendação das autoridades locais, utilizar medicamentos para vermes contra a Covid, vacinar-se e usar máscaras passaram a ser comportamentos definidos não por uma decisão de seus benefícios fundada em informação técnica, mas conforme o grupo político ao qual pertence a pessoa.

Das diferentes formas de contestação às medidas de proteção e controle contra a pandemia, o uso de máscaras é o mais visível ao observador externo, tendo em vista que vários motivos podem levar a necessidade de sair à rua e apenas com informação pessoal pode ser possível saber se um indivíduo se vacinou ou tomou ivermectina. Isto leva à possibilidade de observar como este pequeno acessório, de pano, papel ou outros materiais, é carregado pelo público e criar hipóteses de como espelham características da cultura política de uma população.

Na prática, há uma série de possibilidades de uso das máscaras. Com o paulatino fim das medidas de restrição de circulação e reabertura de escolas, serviços e escritórios no Brasil, basta postar-se em uma janela e ver a realidade passar. Aqui vão minhas hipóteses, de acordo com algumas destas categorias, numa escala de cobertura facial que também é de sofisticação política.

O desmascarado. Divide-se em duas espécies diferentes. O desmascarado não-não-estou-nem-aí em geral é jovem e se encontra nos bares e nas ruas à noite, cercado por seus amigos também sem máscara. Quer apenas se divertir despreocupadamente. Politicamente é alienado. Nem sabe por que a máscara é uma polêmica. Não deve ser confundido com o desmascarado militante. Esta é uma categoria que tende a ser menos comum. O indivíduo que anda nas ruas sem máscara acredita que ou o pior já passou, ou nunca houve grande risco, seja porque é apenas uma “gripezinha” ou porque o vírus é uma invenção da imprensa esquerdista. Pode ser apenas um cético ou individualista, que acha que se ele considera que não corre risco, os demais não importam. Mas pode tentar entrar em um supermercado e dizer que é seu direito, que ninguém pode impedi-lo. Politicamente desconfia das instituições, não aceita a legitimidade das restrições impostas. Nos EUA seria identificado como libertário, mas no Brasil aceita a liderança imposta de cima para baixo quando lhe convém. Pode até ter um elevado grau de instrução, mas sua cultura política é autoritária.

Porém enfrentar as autoridades e correr o risco de receber multas para declarar a sua liberdade de andar sem máscara implica em um compromisso político que a maioria não está disposta a manifestar. Como na política brasileira, a maioria é constituída dos ambivalentes.

Seu comportamento pode ser o da máscara na mão. Visto de longe pode ser confundido com o desmascarado, porque anda nas calçadas sem máscara e sem medo. Porém, nas mãos ou pendurado no pulso por uma alça carrega a máscara, à disposição para colocá-la caso em que tenha de entrar em um ônibus ou uma loja. Não contesta as instituições, apenas não tem grande interesse no que elas decidem. Sabe qual é a norma, mas considera um incômodo cumpri-la, o que só faz quando alguém está olhando.

Uma variação é a máscara no queixo. Provavelmente a categoria mais comum. Quem usa a máscara assim tem informação para saber a utilidade da máscara, mas acha que só precisa cumprir a norma se tem alguém próximo. Mantém no queixo para facilitar o bota e tira. Também pode manter pendurada em uma só orelha. Do ponto de vista das instituições, não contesta a validade da norma ou a legitimidade de quem a impõe. Só faz a sua própria interpretação da rigidez do uso. Na sua visão está fazendo tudo certo, pois quando alguém se aproxima ele puxa a máscara para cima.

Outra variação é o mascarado-com-nariz-de-fora. Usa a máscara mas não percebe ou não se importa quando fica com o nariz de fora, cobrindo apenas a boca. Não se insurge contra a norma, mas não dá muita atenção a seu cumprimento.

Os ambivalentes são o modelo típico da cultura política brasileira. Se consideram democratas e cumpridores da lei, mas aceitam o jeitinho e a interpretação flexível quando lhes favorece, mas acham que a lei tem de ser dura quando é contra os outros.

Por fim temos o mascarado. O cidadão cumpridor das leis. Anda sempre com a máscara colocada, protegendo o rosto. Sabe a diferença entre o pff2 e a máscara de pano. Podemos dividir entre o mascarado por obrigação e o mascarado por opção. O mascarado por obrigação aceita a norma, quer se proteger e não quer chamar a atenção por descumpri-la. Não é um defensor feroz do seu uso, por isso vai preferir a máscara de pano ou papel descartável. Inclui o profissional mascarado, que usa a máscara da instituição a que pertence, com logotipo na lateral ou com o símbolo do clube, como na imensa coleção de máscaras do Flamengo usadas pelo vice-presidente Mourão.

O mascarado por opção usa uma máscara cirúrgica por baixo da máscara de pano com a mensagem política, ou a máscara pff2. Leu os artigos avaliando as diferenças de proteção e olha com cara feia quando passa o vizinho com a máscara no queixo.

Os mascarados, do ponto de vista da cultura política, incluem tanto os institucionalistas mais tradicionais, conservadores, que conhecem as leis e apoiam a democracia formal quanto os ativistas militantes, que fazem do uso da máscara uma mensagem crítica ao governo, uma forma de se diferenciar dos negacionistas. Para um a máscara é uma forma de não ser notado, para o outro a máscara é para ser notada. São provavelmente os mais sofisticados politicamente, seja à direita, seja à esquerda.

Este espelho de nossa cultura política ajuda a entender as dificuldades enfrentadas na aplicação de políticas consistentes no combate à pandemia. Historicamente o país construiu valores e atitudes em que prevalece a identificação pessoal com os governantes, cujas decisões são aceitas ou criticadas devido a relações de empatia ou rejeição de natureza emocional. As instituições são vistas como suspeitas e como mero instrumento da vontade do governante, numa espécie de “Síndrome do VAR”. Como torcedores em relação à revisão das decisões de campo, estas sempre parecem justas quando favorecem nosso time e são abusivas quando são a favor do adversário.

Isto dificulta a implementação de políticas públicas de saúde, pois o que leva ao respeito público pelas orientações não é sua racionalidade ou fundamento científico, mas a identificação política dos destinatários. O que seria um problema de longo prazo, cujos efeitos imediatos são individualizados, como a rejeição de vacinas contra o Sarampo ou Papilomavirus, é uma tragédia de efeitos coletivos imediatos, em uma pandemia de uma doença infectocontagiosa como a Covid-19.

Assim, para viver num país mais seguro e mais saudável no futuro, além da reconstrução da confiança e do financiamento do SUS é preciso reconstruir a confiança na democracia e em suas instituições. Ambas as tarefas são gigantescas.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

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