A análise de uma eleição mal saídos os resultados sempre corre o risco de resvalar para o impressionismo, para a análise ligeira, ainda não suficientemente sedimentada das linhas de forças produzidas pelos entrechoques políticos. Ademais, faz-se indispensável sublinhar que o Brasil não vive sob condições normais, de plena vigência do Estado Democrático de Direito, o que faz necessário a contextualização das circunstâncias em que as eleições se deram no país. Afinal, o enredo do tempo irradia-se conjugado aos acontecimentos, aos atores sociais e a suas vontades constituintes.

O ciclo histórico a que estamos presos traduz a cadência da progressividade democrática, da inscrição de direitos, da ampliação das subjetividades, trazida pela assunção do regresso burguês mais infame, ainda que perpassado pela resistência dispersa das maiorias catatônicas. Mas há lutas no porvir, potências dormitando prestes a explodir, carentes, apenas, de uma ordenação da energia, da indignação e da inteligência dispersas, refletidas, inclusive, nos números das eleições de 2020.

A tessitura do golpe de 2016 e o desarranjo das instituições por ele articulado delimitam fortemente os processos políticos, sociais, culturais, econômicos, incluindo, é claro, as eleições ocorridas. A “suspensão” da Constituição de 88, do plexo estrutural de seu sistema de Direitos Fundamentais, de garantias, de funcionamento das relações entre os poderes inflete sobre a realidade, deformando-a. Desde 2016 verificamos a moldagem ostensiva da parte dos aparatos estatais, mas também pela mídia corporativa do Capital, da construção de uma “narrativa” criminalizadora da esquerda, mormente do PT, de Lula, fomentando uma retórica que buscava “naturalizar” a seletividade persecutória das instituições, mais intensamente do judiciário e de suas cúpulas, estas profundamente vinculadas aos interesses da plutocracia financeira.

“Neutralizar” o povo, interditar suas organizações, dirigentes, emascular a cultura nacional, rebaixar os salários, desbaratar as empresas estatais, enfim, manter os circuitos restritivos do consumo, da renda e do poder, já flagrados por Florestan Fernandes e outros, são algumas das dimensões desejadas pelos recolonizadores do Brasil, por essa direita brasileira enquistada no poder. Basta observar a propositura, devidamente aprovada pelo congresso, da Emenda 95 de iniciativa do governo golpista de Michel Temer – logo após a destituição ilegítima da presidenta Dilma Rousseff – travejando assim os repasses de recursos para o desenvolvimento das políticas sociais, além das iniciativas de aprofundamento da recessão, do desemprego estrutural e do desmonte das redes de proteção social em favor das maiorias.

A trama golpista continuada desenvolveu-se num transcrescimento nefando que terminou com a constrição do debate público, com a prisão forjada de Lula – maior líder popular brasileiro e virtual vencedor das eleições presidenciais de 2018 se não fosse impedido inconstitucionalmente de ser candidato -, culminando com a chegada ao poder de Jair Bolsonaro, personagem que funde em sua teratológica figura os valores do neofascismo e do neoliberalismo. É nesse clima de “exceção permanente”, de blitzkrieg diária contra a democracia, à universidade, à intelectualidade, aos artistas, aos trabalhadores, às mulheres, aos negros, gays, etc e “aos de baixo”, que ocorrem as eleições de 2020.

Ou seja, são eleições encetadas sob um campo minado, em meio a uma guerra declarada pelo governo contra a sociedade, após a eclosão de um golpe violento, retraidor dos horizontes até então acumulados pelo advento da democracia brasileira desde os anos 80. Daí poder-se afirmar que as recentes eleições acontecem no espaço e no tempo de uma contrarrevolução desencadeada pela direita que coesionou as classes dominantes e inaugurou um novo marco de ordenação de poder no capitalismo brasileiro, limando as classes subalternas do acesso ao Estado.

É sob essa ambiência de profunda desigualdade material, formal, jurídica, que precisamos compreender as eleições tanto no primeiro turno, quanto no segundo turno, estas recém-concluídas no dia 29 de novembro em várias cidades brasileiras. Um quadro que nos aponta para elementos contraditórios que vão desde o revigoramento da direita tradicional, derivada de partidos como DEM, PSD, PP que cresceram em número de votos – o que revela um desgaste do bolsonarismo e sua lógica plebeísta burguesa, voltada para uma ênfase antipolítica e antipartido – até o despontar de lideranças novas na esquerda brasileira, destacando-se a personalidade Guilherme Boulos (PSOL), capaz de galvanizar a esquerda, a intelectualidade crítica e os movimentos sociais, no principal polo da luta de classes no país.

À margem dessa tendência mais geral, pontuamos a presença de Ciro Gomes, com sua trajetória errática, como um dos sujeitos importantes da dinâmica política-eleitoral recém-terminada. Originário da ditadura militar, possuidor de uma retórica sibilina, demagógica e inescrupulosa, camaleônico, com passagens em uma fileira de partidos os mais diversos ideologicamente, detém a acurácia de um discurso plástico, amoldável ao público visado, daí o caráter de esfinge desse personagem. Esse “Napoleão” furta-cor, essencialmente ambíguo, mutável, desliza como peixe entre direitas e esquerdas informes, buscando ocupar o vácuo do desgaste de Bolsonaro e Moro como líderes da extrema direita brasileira. Nesse sentido, opera como um trânsfuga, acreditando que poderá receber um “cavalo selado” em sua busca de chegar à presidência, quiçá, como o candidato da nova hegemonia das classes dominantes no poder desde 2016. Figurará, sem dúvida, como braço da constituição de um polo de centro direita nos períodos que se abrem para nossa imprevisível vida política.

No entanto, sob o enfoque da grande imprensa brasileira, o ponto mais salientado da análise eleitoral, como já era de se esperar, recaiu sobre as notícias relacionadas às derrotas do Partido dos Trabalhadores em diversas cidades, o que soou como um bom augúrio em meio a esta trágica pandemia, para a direita demofóbica. Entretanto, mesmo reconhecendo que o PT e a esquerda brasileira como um todo tiveram importantes derrotas, dimanadas de muitos aspectos a serem detidamente refletidos, precisamos ser mais cuidadosos frente à complexa realidade brasileira para sermos consequentes e justos na apreensão das múltiplas determinações presentes na conjuntura atual.

Se a grande imprensa assim age, o faz mais por uma missão política e estratégica de construir um cenário eleitoral que prepare o caminho de seus candidatos, do que de informar adequadamente a sociedade brasileira. Importante lembrar que a grande imprensa do Brasil atuou em comunhão com os núcleos duros do Estado Brasileiro para desqualificar e destruir o capital político do PT, de Lula e, consequentemente das forças de esquerdas que atuam no país, constituindo-se junto com as Forças Armadas no principal esteio/partido das classes dominantes nativas.

Para deslindar o quadro eleitoral, interpretando os números fornecidos, precisamos estabelecer um nexo com a história, periodizando os diferentes momentos que nos trouxeram até aqui. Vejamos então. Desde 1989, quando tivemos a primeira eleição após a Ditadura de 1964, não tínhamos tido campanhas com discussões tão próximas das tradicionais pautas dos trabalhadores e movimentos sociais populares. Por diversas razões, algumas relacionadas à nova configuração do mundo laboral – dada a pulverização dos trabalhadores via “terceirização” na contemporaneidade – outras em decorrência de um pragmatismo eleitoreiro, de uma presumida “governabilidade” que trouxe uma efetiva despolitização do processo eleitoral, incidindo numa diluição programática das referências da esquerda, além de vários outros motivos, a serem explorados analiticamente.

Mas, a despeito de tudo, dos enormes obstáculos à democracia no país, da situação defensiva das maiorias posta pelo desemprego galopante, pelo medo imprimido à sociabilidade neoliberal hegemônica, retomamos, em certa medida, o lugar da política, de sua dignidade em meio à selva do “Mercado Total”. Como feito acima, voltamos a destacar o alento trazido pela campanha de Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo, na última eleição. Mais do que um simples candidato a prefeito, preso à pauta administrativa de uma cidade caótica, prenhe de inúmeras demandas, Boulos foi capaz de colocar no centro do pleito a temática da ação coletiva, organizada e organizadora de outro consenso político, social, econômico e cultural. Imbricou o local com o nacional, o administrativo ao político-econômico-cultural, postulando pela atualização de uma agenda calcada num projeto emancipatório regido pelos fundamentos socialistas, antagonizando-os à direita, precipuamente a ligada ao bolsonarismo. O que fez com que a ética deixasse de ser mote de abordagens demagógicas para tornar-se expressão de solidariedade, de compartilhamento, de esperança proveniente da energia “dos de baixo”.

Como Boulos é oriundo político de Movimentos Sociais Populares (MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), por exemplo, soube abordar as questões relacionadas à propriedade, sua função social e o dever do Estado, legitimando a luta por terra, moradia, rompendo o cerco da tônica liberal-conservadora que, sob o pálio da defesa da ordem, oculta a proteção ao Capital Imobiliário especulativo. Boulos e sua vice Luíza Erundina, ex-prefeita de SP, souberam dialogar com a população de forma eficaz e direta. Sem subterfúgios e com a coragem de um fiel militante de esquerda, eles trabalharam para esclarecer a hierarquização invertida de valores da sociedade capitalista e de como isto traz a infelicidade e a incapacidade de sustentabilidade social dentro de uma referência minimamente humana e comprometida com a vida para uma cidade.

A campanha de Boulos e Erundina foi uma campanha em que houve uma elevação de conteúdo político e uma sinalização, mesmo que ainda preliminar, de uma consciência de classe, elaborando assim uma disputa contrahegemônica de maneira pedagógica, compreensível para setores significativos da periferia. O resultado disto foi que o PSOL multiplicou quase quatro vezes a sua votação. Mas, não só: para além do resultado eleitoral para cargo majoritário, o PSOL elegeu três vezes mais vereadores em SP do que em anos anteriores.

O que ocorreu em São Paulo não se reproduziu, infelizmente, pelo Brasil como um todo, mas mesmo assim, vimos de uma forma geral campanhas mais à esquerda do que em outros anos. Mesmo no auge da popularidade de Lula e do PT, as campanhas sofriam de um constrangimento da exposição de algumas pautas mais à esquerda em função do arco amplo de aliaas do PT. O problema foi se agravando porque mesmo depois de conquistadas algumas vitórias, o enfrentamento continuava a ser adiado em função da garantia da governabilidade e da alegada dificuldade em inverter a correlação de forças na luta de classes. Portanto, é importante ressaltar que quando se afirma que a esquerda foi a grande derrotada desta eleição, perde-se de vista, por querer ou por superficialidade, a avaliação do conteúdo político de cada campanha. Em 2014, a campanha que reelegeu a presidenta Dilma Rousseff foi pouco ofensiva no enfrentamento de importantes pautas dos Direitos Humanos, como a questão da mulher, da homofobia e da tortura na Ditadura. O resultado foi um desdobramento desta problemática negligenciada durante o ano de 2015 até o Golpe de 2016.

Em 2018, já após o Golpe, a pauta do machismo e do racismo veio com mais força e destaque. A morte de Marielle Franco tirou de nós uma importante e jovem liderança política da periferia, mas serviu de estímulo para outras tantas candidaturas de mulheres negras ao redor do país. Mesmo assim, a força da máquina das fake news e outras tantas sujeiras, como o impedimento da candidatura de Lula, levou a uma campanha com ares dramáticos, mas sem a radicalidade necessária. Apesar da derrota para o facínora Bolsonaro, a imagem de ódio colou em sua figura pública, e isto é muito ruim para quem está no cenário político.

Mas, o que vimos neste ano de 2020 foi um crescimento ainda maior de pautas importantes e históricas da esquerda. Senão vejamos. Não foram poucas as votações históricas de candidatas e candidatos negros, lgbtq+ e de mulheres. A periferia, a gente preta, as mulheres, a comunidade legbtq+ fizeram história nesta eleição. Não só por que conseguiram ser eleitas e eleitos, mas por que conseguiram uma votação extraordinária, superando candidaturas tradicionais. Estas vitórias foram viabilizadas pelos vários partidos de esquerda como PSOL, PT, PC do B e até partidos de centro como PDT e PSB. Tais conquistas eleitorais assinalam uma importante tendência da sociedade brasileira atual, que é o enfrentamento das questões de gênero e do racismo como bandeira inadiável de nosso tempo. Sem dúvida é uma vitória muito importante, principalmente quando percebemos que ainda temos uma persistente cultura reacionária e conservadora na política atual, alimentada pelo fanatismo religioso e pela lamentável e revoltante omissão de dirigentes e de burocratas de partidos de centro e de esquerda.

Se até agora falamos de vitórias, vamos falar do que foi uma importante derrota nesta eleição. Destacamos aqui as candidaturas para as prefeituras de Fortaleza, do Recife, do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Nestas cidades três mulheres disputavam as respectivas prefeituras, duas delas pelo PT e uma pelo PC do B. Somente em Fortaleza a candidata do PT Luizianne Lins não foi ao segundo turno, mesmo assim, todas foram brutalmente atacadas por seus adversários políticos com argumentos misóginos. Assim como o estupro é usado como arma de guerra por exércitos de Estados e de mercenários, os ataques misóginos foram usados sem pudor e constrangimentos como arma de angariar voto. Este tipo de tática de guerra, usada nas eleições, fez com que algumas candidatas pelo Brasil afora tivessem até que expor um pouco mais de suas vidas privadas para não serem esmagadas pelo “Martelo das Feiticeiras” contemporâneo. Elas precisavam mostrar seus maridos, filhos e casas, para serem confiáveis para o eleitorado. O terrível deste fato histórico é sabermos que alguns partidos de esquerda e de centro usaram e justificaram os ataques às candidatas mulheres. Com esta postura gravíssima, desleal e reacionária é que se afirma que perdemos para o bolsonarismo e sua cultura de ódio e obscurantismo em todos os estados onde companheiros e companheiras de militância de esquerda reproduziram prática tão repulsiva.

Mas, isto, infelizmente, não é prática nova na história da esquerda. Em 1945 Andrei Zhdanov, numa assembleia de escritores na antiga União Soviética, pronuncia um discurso de ódio contra o escritor Zostchenko e à poeta Anna Akhmátova“é a poesia de uma mulher possuída pelo frenesi, cujos sonhos passam da alcova à capela”. E mais adiante: “Não se trata exatamente de uma monja, nem sequer de uma rameira, mas antes de uma monja e rameira ao mesmo tempo, onde o sentido da prostituição se confunde com a sua própria oração”. É importante lembrar que Akhmátova era muito querida e respeitada em toda Rússia por sua poesia de excelência.

Por fim, pode-se afirmar que o quadro delineado pelas eleições municipais do Brasil se não é capaz de trazer-nos a certeza da vitória sobre a reação, da derrocada inclemente do protofascismo bolsonarista; de outro lado, indica-nos caminhos, processos promissores, veredas a serem perseguidas. A primeira lição que fica é da necessidade da conformação de uma Frente de Esquerda, que organicidade às lutas cotidianas anticapitalistas, contrárias à necrofilia do governo de ocupação interna em suas distintas frentes de combate, sejam elas políticas, econômicas, culturais, além de disputar espaços na luta institucional, precipuamente na eleitoral.

Pois se é verdade que o PT continua hegemônico na esquerda brasileira, também o é, que, agora, mais do que nunca precisa estabelecer diálogos, construir negociações, compor mais com outras forças que emergem do cenário da esquerda, da luta “dos de baixo”, incluindo as demandas identitárias revigoradas. Segunda lição: a de pensar em novas lideranças fortes, representativas, sublinhando o papel reservado a Boulos – posto que este agrega para além das fileiras do PSOL – para redefinirmos a nossa tática e estratégia de ação política socialista, contrastando nossos valores, fundamentos aos que regem o mercado e o dinheiro reificados. E a terceira lição e tarefa que devemos cumprir é a que pensemos como parte de uma totalidade maior, integrada pelos “de baixo” à América Latina, a unidade internacionalista dos trabalhadores, do proletariado em suas novas formas de configuração, linguagens, identidades. Ou enfrentamos as questões fundamentais da esquerda e do capitalismo, ou seremos a sombra do que um dia sonhamos ser.