Ouvimos os livros pelos olhos; a janela da alma

Há muitos anos uma vizinha disse de repente: “Os livros me salvaram. Salvaram minha vida”. Era uma doutora em Letras e por cautela não perguntei por que, aliás, fiquei espantado com as duas frases devido ao poder da palavra salvação. Se não fossem os livros a vizinha poderia morrer ou enlouquecer, ou… mas interessante o poder que os livros tiveram em sua vida. Os livros são amigos que nos acompanham e falam quando abertos, eles falam em silêncio e a gente escuta com os olhos, que é, como se sabe a janela da alma. O livro abre as portas do conhecimento e da imaginação, quando se juntam os livros formam uma biblioteca, um laboratório onde mora o sentimento do mundo. Recordo agora a história de uma enchente numa pequena cidade de Pernambuco e uma avó disse para sua netinha de oito anos para só levar o absolutamente indispensável. Ela agarrou os livros da escola e pôs em sua mochila.

Uma professora salva pelos livros, uma menina que salvou seus livros revela retratos da gratidão que nós leitores temos com esses objetos vitais, salvadores sim. O livro é assim um acompanhante terapêutico, e ao longo da vida, além dos amigos essenciais, temos os livros amigos que convivemos. Um livro fechado é uma coisa entre outras coisas, mas quando aberto respira, vive e são libertos seus espíritos encantados. Essencial é o encontro do leitor com o livro, pois é aí que ocorre o fato estético disse o escritor Jorge Luis Borges numa conferência no Centro Cultural San Martin em Buenos Aires na década de setenta.

Há encontros inesquecíveis como foi a recente leitura do “No café existencialista” escrito por Sarah Bakewell. Nele se convive com Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Levinas, e muitos mais durante a segunda guerra mundial, e depois dela. É o retrato de tempos em que a Filosofia, a sensualidade, e a rebeldia andavam juntas e os intelectuais eram estrelas. Foi eleito como um dos dez melhores livros do ano pelo New York Times e pude conhecer de perto alguns dos heróis que tive na adolescência. Entre as tantas histórias saborosas do livro reconto uma que já contei na crônica “Um cachorro no campo de concentração” sobre Levinas, o famoso filósofo. Esteve preso durante vários anos num campo de concentração nazista, onde os presos eram maltratados, desprezados pelos guardas nazistas. Quando os presos saíam do campo escoltados para trabalhar pela manhã viam um cachorro e quando voltavam à tardinha lá estava o mesmo cachorro latindo feliz. Levinas se sentiu tratado pelo cachorro de forma humana e isso fez a diferença naquele mundo cruel e frio do campo. Essa experiência serviu para revisar seu pensamento, passou assim da ontologia para uma ética do contato pessoal.

Reescrevo essa história e percebo um brilho ao final da última frase sobre o contato pessoal, pois em alguma medida está fazendo falta. As redes sociais são ótimas, mas não substituem os encontros pessoais que nos humanizam e encorajam. Aos poucos vamos retomar a vida social, precisamos uns dos outros para caminhar nos labirintos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
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