Quem assiste às sessões de julgamento do Supremo Tribunal Federal certamente já percebeu que atrás de cada um dos 11 ministros que integram a Corte há um auxiliar. Nos bastidores do mundo jurídico, esses agentes – alguns, servidores públicos, outros, terceirizados – são conhecidos por “capinhas”. Eles exercem funções, como organizar os livros nas mesas dos julgadores, servir-lhes de água e café e puxar as poltronas para que tomem assento.

O jornalista Fabiano Costa, em reportagem publicada no G1, em 13/08/2012, revelou que “a convivência quase diária com os ministros permite que eles (os “capinhas”) conheçam, como poucos, os gostos e as manias dos juízes da Suprema Corte. Não raras vezes, os auxiliares reconhecem os pedidos dos chefes por um gesto ou olhar”. (http://g1.globo.com/politica/mensalao/noticia/2012/08/saiba-quem-sao-os-capinhas-anjos-da-guarda-dos-ministros-do-stf.html)

Nessa imagem das supremas cadeiras que requerem uma pessoa paramentada para movê-las vemos estampado o caráter aristocrático da Suprema Corte e a posição de privilégio ocupada por seus membros. Será a isso que chamam liturgia?

A moldagem aristocrática institucionalizada na Corte Constitucional, porém, ultrapassa em muito o mero jogo de cena e tem reflexos significativos na atuação dos magistrados. Com efeito, a esfera de atuação e poder do Judiciário em geral e dos ministros do Supremo em especial vem se alargando nos últimos tempos. A ampliação do conjunto de matérias judicializáveis e o papel do Judiciário nos tempos atuais, aliás, já foram discutidos aqui no Terapia Política em excelente artigo do advogado Mauro Abdon.

A atuação do Supremo Tribunal Federal no controle dos atos dos demais poderes é relevantíssima e corretamente impede a prática de abusos por membros do Legislativo ou do Executivo, tais como a edição de leis inconstitucionais e de atos administrativos ilícitos.

Recentemente, ao afirmar a autonomia de governadores e prefeitos para praticar atos de combate à pandemia provocada pelo novo Coronavírus, o STF fez valer a Constituição e o princípio federativo nela consagrado. Além disso, nessa mesma decisão, a Corte protegeu a todos nós da política potencialmente genocida de negação da gravidade da pandemia que o Governo Federal parece querer implementar.

Preocupado apenas com seu futuro político, o presidente busca forçar a reabertura da economia o mais rápido possível, visando melhorar os índices econômicos e preparar o terreno para as eleições em 2022. As incontáveis mortes que seus atos podem e vão provocar não importam ao chefe do Executivo. Sobre elas, ele disse: “Não sou coveiro.” E dias depois: “E daí?”.

No Brasil e em todas as democracias constitucionais, a Corte Suprema fala por último. Não há instância revisora do conteúdo das suas decisões. É, aliás, assim que deve ser. Apenas em ditaduras membros do Executivo podem rever decisões judiciais, afastar juízes, fechar tribunais ou ameaçar seus membros.

O que restringe e pauta as decisões da Suprema Corte é a Constituição Federal. Ocorre que o intérprete último da Constituição Federal é o próprio Supremo. Ao fim e ao cabo, é o próprio STF o órgão que dá o sentido e o alcance das normas que regem e limitam sua atuação. É exatamente por isso que os membros da Corte Constitucional devem, no exercício de seu poder, fazer um esforço de autocontenção, pautando-se sempre pelas normas legais e constitucionais e pela boa técnica jurídica.

Nas últimas semanas, ocuparam diariamente os noticiários reportagens sobre as tentativas do presidente da República de intervenção na Polícia Federal. A nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a Direção Geral da PF foi anulada por decisão do ministro Alexandre de Moraes. A decisão que anulou a nomeação de Ramagem é, a nosso ver, correta. Embora o presidente seja competente para nomear o ocupante do cargo, a nomeação, tal como todos os atos administrativos, deve respeitar os princípios da moralidade e da impessoalidade. No caso dessa nomeação específica, existiam indícios reais de que tais princípios estariam sendo violados, o que justifica a anulação do ato pelo Poder Judiciário. A nomeação, ademais, na forma da lei, é feita pelo presidente na condição de chefe de Estado e não de chefe de Governo, já que a PF, é órgão de Estado e não de Governo. Isso significa que deve o presidente nomear a pessoa mais qualificada para o exercício da função e não uma pessoa de sua confiança.

Mas é sobre outro fato relacionado com a crise envolvendo a Polícia Federal, e que passou quase desapercebido nos jornais, que gostaríamos de tratar. Quando ficou clara a intenção do presidente da República de trocar o diretor-geral da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes se antecipou à ação do presidente e estabeleceu que a troca da chefia da PF não poderia provocar mudanças na equipe condutora do Inquérito nº 4781.

Para quem não lembra, o Inquérito nº 4781 é aquele em que são investigadas notícias falsas, denunciações caluniosas, ameaças e outras infrações que possam atingir o STF ou seus ministros. O objeto do inquérito é imenso e aberto. Como se sabe, investigações criminais não podem ser instauradas para apurar fatos genéricos e indefinidos, mas esse, como veremos, parece ser o menor dos problemas.

O Inquérito nº 4781 é no momento a demonstração máxima de exercício de poder sem balizas por ministros do Supremo Tribunal Federal. Fora do mundo jurídico, todavia, pouco se fala do tema. É fato que estamos atolados em um período de caos político, econômico e sanitário. Mesmo assim, o referido Inquérito e o que ele representa merecem alguma atenção.

O Inquérito Policial nº 4781 foi instaurado pelo ministro Dias Toffoli, por meio da Portaria GP nº 69, com fundamento no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe: “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

O Regimento Interno do STF data de 1980 e o artigo 43 mantém sua redação original. É, no mínimo, discutível, se a disposição foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, dado que este permite que ministro do Supremo instaure inquérito em contrariedade ao princípio da inércia do Judiciário que, em linhas gerais, estabelece que juiz não investiga, não age sozinho, mas precisa ser provocado.

Mesmo que se entenda constitucional o artigo 43 do Regimento Interno do STF, a disposição não poderia embasar a instauração de inquérito policial para investigar notícias falsas e outros crimes que ameacem a honra e a segurança do STF ou de seus membros. Isso porque o dispositivo autoriza a instauração de inquérito pelo Presidente do Supremo em caso de crime ocorrido nas dependências do Tribunal ou que envolva pessoas sujeitas à jurisdição da Corte. As notícias falsas, denunciações caluniosas, ameaças e outros crimes que são objeto do Inquérito nº 4781 não foram praticados nas dependências do Tribunal e, ao menos no momento da instauração do inquérito, não existia qualquer indício de que esses possíveis crimes envolvessem pessoas sujeitas à jurisdição do Tribunal. Logo, o artigo 43 do Regimento do STF não se aplica aos fatos que o Inquérito nº 4781 pretende apurar.

Não bastasse a instauração de inquérito com base em dispositivo que não autoriza a medida, os atos praticados no procedimento policial seguiram beirando as raias do absurdo. O ministro Dias Toffoli designou o ministro Alexandre de Moraes para presidir o procedimento sem mandar o feito para livre distribuição, como determina a lei. Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes, sem ser provocado por ninguém, determinou, neste inquérito policial, o recolhimento e o impedimento da veiculação de matéria jornalística que mencionava magistrados da Corte. Lembremos, mais uma vez, que juízes não agem espontaneamente, mas devem ser provocados pela parte interessada. Inquérito policial também não é procedimento adequado para tomada de decisão dessa natureza. Sem mencionar o conflito de interesses evidentemente presente quando um magistrado decide sobre a legalidade de matéria jornalística que trata do órgão julgador a que ele mesmo pertence.

Não se exalte, o mais crítico vem agora.

Durante o triste episódio em que reportagem jornalística teve sua divulgação impedida – poderíamos chamar de censura, mas sejamos leves – a então procuradora da República, Rachel Dodge, determinou o arquivamento do inquérito nº 4781. A competência para promoção da ação penal ou determinação de arquivamento, conforme o caso, é do Ministério Público, não do Judiciário, na forma do artigo 28 do Código de Processo Penal. A PGR agiu, pois, corretamente e no limite de suas atribuições.

O ministro Alexandre de Moraes se seguisse a lei, não teria outra alternativa, exceto arquivar o inquérito. Não foi isso entretanto, que o ministro fez. O ministro determinou a continuação das investigações.

O resumo da ópera é o seguinte: o Inquérito Policial nº 4781 foi instaurado com base em norma anterior à Constituição Federal de 1988 e que, mesmo se considerada constitucional, sequer autoriza a instauração de Inquérito para apurar crimes ocorridos fora da sede do STF e, em princípio, praticados por pessoas não sujeitas à jurisdição do STF; o Inquérito é presidido por ministro designado por ato do presidente da Corte, desrespeitada a regra da livre distribuição; a investigação prossegue mesmo depois de a chefe máxima do Ministério Público, que é a autoridade competente para decidir sobre a continuidade do inquérito, determinar seu arquivamento; por fim, nos autos do Inquérito, o ministro Alexandre de Moraes decide de ofício, sem provocação, de forma monocrática e livre.

A última manifestação do ministro Alexandre de Moraes no Inquérito nº 4781, como vimos, foi determinar que os delegados que presidem a investigação não podem ser substituídos. O ministro interferiu, assim, nas competências, procedimentos e cadeias de comando da Polícia Federal. Essa interferência, quase desnecessário dizer, não está entre as competências dos ministros do Supremo. Ainda assim, a decisão foi tomada para impedir que a investigação que interessa aos membros da Corte Constitucional seja afetada por eventuais intervenções do presidente da República na PF.

Na dança das cadeiras da Polícia Federal, portanto, só os assentos dos delegados que presidem inquéritos instaurados e conduzidos por ministros do Supremo são inamovíveis. As supremas poltronas, já sabemos, se movem por ordem dos ministros com o auxílio dos “capinhas”. Para dar a ordem, basta um gesto, um olhar.