Em outubro de 2015, nas eleições para a Assembleia da República em Portugal, o Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista Verdes (PEV) formaram maioria e, a partir daí, uma coalizão de governo que se colocou como alternativa ao neoliberalismo. Desde então, Antonio Costa (PS) é o primeiro-ministro que, logo após as eleições, juntamente à Catarina Martins (BE), Jerônimo de Souza (PCP) e José Luiz Ferreira (PEV), costuraram uma coalizão entre as quatro forças de esquerda que desde sua enunciação foi taxada de frágil, inviável, oportunista, saco de gatos e outras (des)qualificações. Muito se poderia dizer dessa coalizão, pois era inédita e, olhando o passado, pouco provável.

O fato pode parecer estranho, mas o campo democrático e progressista em Portugal já havia conseguido maioria em eleições anteriores, mas isso nunca resultou num acordo de governança. A aliança pós-eleições de 2015 foi consequência da necessidade de colocar um fim nas políticas liberais, muito parecidas com aquelas implementadas na América Latina, que resultaram numa queda profunda na produção e no emprego, assim como na venda de empresas estatais na área de energia, infraestrutura e transporte.

A aliança surpreendeu a todos, pois não há tradição do PS, segundo mais votado nas legislativas, em coligar-se com os demais partidos à sua esquerda a não ser episodicamente. Desde a Revolução de 25 de abril de 1974, Mário Soares e Álvaro Cunhal, (lideranças históricas do PS e PCP respectivamente), sempre houve marcadamente culturas políticas diferentes que se expressaram com relação ao movimento social, às centrais sindicais e no apoio aos grupos políticos dirigentes das ex-colônias nas disputas pelo poder, entre muitos outros. Os portugueses (e não só eles) se surpreenderam com a frente para governar, até porque ela foi construída em torno de um projeto na contramão dos movimentos direitizantes em outros países europeus.

Na verdade, o Tejo parecia correr como sempre, na mesma direção dos anos anteriores. A coligação PP/PSD (Partido Popular, de direita e Partido Social Democrata, de centro-direita), que governou Portugal por quatro anos, entre 2011 e 2015, ficou em primeiro lugar nas eleições legislativas de 2015, com 38,5% dos votos, cerca de seis pontos percentuais à frente do PS, que disputou sozinho. Ocorre que esta primeira posição era relativa. No conjunto dos eleitores, a maioria dos votos foi atribuída às forças de esquerda.

Nessa perspectiva, a mudança de postura do PS viabilizou a formação da maioria aos partidos de esquerda na Assembleia que, nessas condições, elegeu o primeiro-ministro. Dentre todos os portugueses, talvez o mais espantado tenha sido Paulo Portas, presidente do PP, que não poupou palavras desdenhosas e chamou a composição da maioria de Geringonça. O significado da palavra é claro, refere-se a algo vulgar, frágil, precário, mas todos assumiram a designação, até mesmo as lideranças da composição, e a palavra passou a significar a importância e a validade de um encontro de vontades do campo democrático e progressista com suas diferentes culturas políticas, para contrapor-se às políticas ortodoxas.

O parlamentarismo português é mitigado e há eleições diretas para presidente. Em janeiro de 2016 a aliança PP/PSD e PPM (Partido Popular Monárquico) elegeu com 52% dos votos para presidente de Portugal o simpático e bom negociador, professor Marcelo Rebelo de Castro, do PSD. Até hoje prevalece essa coabitação no poder: presidente do PSD e primeiro-ministro do PS sustentado pela geringonça.

O resultado do governo da Geringonça está bem avaliado, é o que confirmam as urnas nas eleições de 2019, nas quais ampliou sua base parlamentar. Aliás, estas eleições foram extremamente disputadas, entre os candidatos, surgindo até mesmo um “Bolsonaro português”, tentando pegar carona na figura do brasileiro, foi André Ventura, comentarista esportivo e professor, que se elegeu pela primeira vez como deputado alcançando 1,3% dos votos. Foi o único eleito de seu partido, com o sugestivo nome “Chega”.

O exemplo da experiência em Portugal é inspirador e outra geringonça poderia ter acontecido em janeiro de 2016 na Espanha, mas Pedro Sanchéz (do PSOE, Partido Socialista Obrero Espanhol) não aceitou a proposta de Pablo Iglésias (do Podemos) e a Espanha esperou mais quatro anos para que, pela primeira vez desde a transição democrática de 1978, os dois principais partidos de esquerda espanhola se entendessem para a formação de um governo partilhado. Dois dias depois da eleição em 2019, se chegou a um acordo para a formação de um “governo de coalizão progressista” com o Unidas Podemos (Esquerda Unida e Podemos) e outros partidos menores de expressão regional. Com o acerto, Pablo Iglesias, do Podemos, ficou como vice-presidente de governo (ou vice-primeiro-ministro).

Por fim, vale assinalar as eleições municipais realizadas na França neste fim de junho nas quais a prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo, foi reeleita, assim como em outras cidades e regiões onde aconteceram avanços do campo progressista em base à aliança de candidatos verdes com partidos de esquerda. Além de uma sensibilidade maior às causas socioambientais no contexto do coronavírus, está presente um indício de que os ventos da Geringonça estão indo além da Península Ibérica. Sobre a recente experiência francesa, vale a leitura do artigo de Isabella Arria, publicado no Carta Maior, em 29 de junho de 2020*.

Aqui, no outro lado do Atlântico, ainda não há formato nem rascunho de uma geringonça ao molde português. Quem sabe, diante da assustadora ameaça autoritária, acabe sendo construída. Afinal, o Tejo desemboca no oceano e tudo é água que corre.

*https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Na-Franca-a-esquerda-rejuvenesce-em-uma-nova-derrota-de-Emmanuel-Macron/6/47969