“Sebastopol… Se-bas-to-poool…”, Luísa repete curtindo cada som pronunciado. “Sobrancelha… so-bran-ce-lha…”. Essa era diferente. Mais aveludada. Palavra de se falar macio. Lembrava mais veludo do que pelos sobre os olhos. Luísa gosta de palavras. Gosta do som, das costuras delas formando frases e ideias. Acha lindo que uma coisa sentida por alguém possa ser sentida por outro só com palavras. No mundo dos seus pensamentos, palavras são coisa mágica.
Lê as notícias em voz alta quando não tem ninguém por perto para não acharem que é maluca e poder curtir cada palavra. Interpreta de olho não só no sentido das frases, mas no som das palavras, o que lhe faz entender as coisas de um jeito bem diferente. Quando lê um palavrão, traz para a frase escrita ou dita por boca suja toda raiva que um palavrão que se preze deve conter.
Ela não é do tipo frágil e hipócrita que se diz horrorizada quando escuta um palavrão. Nada disso. Luísa é descolada dessas coisas. Fala seus palavrões quando precisa desabafar. Também para se divertir. Acha que no estádio é até obrigatório, com time ganhando ou perdendo, palavrão combina com a energia do lugar. Mas respeita o palavrão do mesmo jeito que respeita qualquer palavrinha. Nas as usa de qualquer jeito. Não abusa. Nem omite.
Seu incômodo não vem das palavras em si, mas do mau encaixe umas nas outras. No mau uso que outros fazem delas. E do mau-caráter falante que elas denunciam. Foi esse mau-caráter e o encaixe que a incomodou nos áudios e transcrições de mensagens que leu nos jornais. Notícia que contava histórias de coisas de polícia, mas que por ter gente importante no meio, o jornal dizia ser coisa de política. A palavra política no meio de tanto palavrão a incomodava. Não combinava. Tinha a ver com crime, com polícia, com estádio – ainda que sem a emoção do futebol – mas para ela não tinha nada a ver com política.
As palavras e palavrões estavam desencaixados. Mal-ajambrados. Palavras e palavrões forçados faziam o retrato de uma política feita à força. De poder que se tenta arrancar no tapa e no grito. De poder agarrado na unha do dedo recurvado e músculos tensos. Como uma briga barulhenta de hienas por carniça.
Tudo na história descombina. Pai ofende filho. Filho ofende pai. Religioso ofende os dois. Não há palavras de família na família. Não há palavras de religião no religioso. Só há palavrões que tornam a família menos família e a religião menos religião. O palavrão faz familhinha, religiãozinha, só pelo diminutivo mesmo, sem o charme doce e carinhoso do diminutivo. Para Luísa, o palavrão no lugar errado encolhe tudo. Faz virar coisa de gentinha.
Parou de ouvir e ler as notícias para aliviar-se de tanta pequenez. Precisava expandir seu espírito para livrar-se dos maus sentimentos que vazavam daquelas palavras e palavrões. Pensou em soltar seus próprios palavrões para aliviar-se. Para botar para fora coisas ruins com palavras ruins, mas bem encaixadas. Teria que ser com um palavrão à altura. Um palavrão medicinal. Um palavrão dito com dignidade para redignificar um espírito agredido pela baixeza alheia.
Olhou para os cantos, para certificar-se de estar sozinha. Soltou seu palavrão com calma. Expirando. Sem exaspero. Na medida dos sentimentos recompostos, sentiu-se melhor. Aliviada. Desopilada. Mas também um pouco melancólica por saber que a baixeza dessa política nacional não vai desaparecer com um palavrão bem dito.
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Ilustração: Mihai Cauli
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