A desinformação existente em relação à situação brasileira quanto às vacinas e à campanha nacional de vacinação contra a Covid-19 é muito grande. O presidente da República desinforma, desinforma o governador de São Paulo, desinforma o Ministério da Saúde e, não menos importante, desinforma também parte da imprensa. Neste último caso, a desinformação objetiva criticar governantes, no que há mérito, mas o panorama oferecido por vezes não é adequado.

Numa situação ordinária de campanha de vacinação, os fatos, grosso modo, acontecem do seguinte modo. O fabricante (não um governo) solicita o registro à Anvisa que, concedido, autoriza a entrada do produto no mercado brasileiro. No Brasil, a maior parte das vacinas que faz parte das campanhas de vacinação do SUS é fornecida pelo Instituto Butantã e pela Fundação Oswaldo Cruz (Biomanguinhos). No caso atual, os dois institutos já apresentaram seus dossiês à Anvisa que, por sua vez, já concedeu autorizações para uso emergencial. O registro definitivo ainda será solicitado. Atualmente, a maioria das vacinas em uso no mundo está sendo utilizada em bases emergenciais.

O SUS (Ministério da Saúde) compra as vacinas dos dois laboratórios segundo um contrato que leva em conta, essencialmente, preço, número de doses e cronograma de entrega. No momento em que essas providências são tomadas, o planejamento da campanha nacional já deve estar desenvolvido em fase adiantada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado há 47 anos. O PNI organiza o calendário da campanha, a infraestrutura (salas de vacinação e logística de distribuição), a aquisição dos dispositivos para aplicação da vacina e o pessoal envolvido. A execução da campanha é uma responsabilidade dos estados e municípios.

Muito importante, a campanha publicitária também deverá estar planejada e desenvolvida. Ela é essencial para a adesão da população. O melhor exemplo de marketing ocorreu nas campanhas que eliminaram a poliomielite mediante a vacina Sabin, alcançada em 1994. Nela, foi criado um personagem – Zé Gotinha – que conquistou o imaginário das crianças e das suas famílias e tornou-se o ícone mais importante de várias campanhas no país. Enfatizo este fato para registrar que a cobertura insuficiente de algumas campanhas recentes (sarampo, p.ex.), deveu-se, entre outros determinantes, à falta de uma boa publicidade.

Mas o fato é que não estamos vivendo uma situação ordinária. A politização do enfrentamento da pandemia aliada à desorganização do Ministério da Saúde oferece um panorama de grande confusão. Até recentemente apenas partes de um plano de campanha eram conhecidos. A organização concreta da campanha no interior do ministério é desconhecida, entre outros motivos pelo ambiente de sigilo e desconfiança lá instituídos pela militarização. A tradicional colaboração de especialistas externos na organização da campanha foi muito prejudicada em função desse ambiente.

O Brasil, certamente, atrasou-se na organização da campanha, muito embora seja equivocado afirmar que tenhamos nos omitido na busca precoce de vacinas. É um erro afirmar que houve omissão quando, em meados de 2020, por iniciativa do Butantã e de Biomanguinhos / Fiocruz, foram abertas negociações para a compra das duas vacinas, com o benefício da existência de transferência de tecnologia para produção local. Foram os dois institutos que tiveram essa iniciativa, sendo que no caso de Biomanguinhos, o Ministério da Saúde aprovou a negociação com o empenho de recursos financeiros.

No que se refere ao Butantã, a lamentável politização do tema por parte do presidente da República e a reação igualmente desastrada do governador de São Paulo fizeram com que a vacina Coronavac passasse a ser considerada uma vacina “de São Paulo”. Também por orientação da Fiocruz, o ministério associou-se à COVAX Facility da Organização Mundial de Saúde. Ainda no caso do Butantã, a politização resultou, entre outras coisas, na lamentável negativa do governo federal em apoiar financeiramente a infraestrutura do instituto para a produção de sua vacina.

Até onde se conhece, as três iniciativas brasileiras compreendem inicialmente 100 milhões de doses da Coronavac/Butantã, 100 milhões de doses da vacina AstraZeneca /Biomanguinhos e 42 milhões de doses de uma das vacinas aprovadas pela COVAX Facility, ainda em 2021. Biomanguinhos e Butantã poderão produzir mais doses das respectivas vacinas posteriormente, de acordo com as necessidades da campanha. Essas cerca de 240 milhões de doses seriam suficientes para imunizar pouco mais de metade da população brasileira, bem acima dos segmentos considerados mais vulneráveis.

Mas o fato é que nas últimas semanas entrou em cena, em todo o mundo, uma nova variável, até então pouco enfatizada pelos analistas muito embora prevista. Trata-se do enorme desequilíbrio entre a capacidade produtiva global de vacinas contra a Covid-19 e a demanda pelas mesmas. As vacinas Pfizer, Coronavac e Oxford/AstraZeneca, seja na forma de produtos acabados seja na forma de insumos ativos estão rompendo prazos de entrega previstos em contratos e já pagos pelos países contratantes e isso tem feito com que as entregas das duas últimas, que compõem a espinha dorsal da estratégia de Butantã e Fiocruz, estejam falhando.

Essa circunstância de grave desequilíbrio entre oferta e demanda desloca o problema de fornecimento de vacinas para outro terreno que não aquele da letra dos contratos, mas sim da diplomacia. Não é a primeira vez que esse fato se coloca e em 2010, durante a pandemia causada pela cepa H1N1 do vírus da Influenza (não existiam então vacinas), o medicamento Tamiflu (Roche) era a opção perseguida para alívio dos sintomas. Isso ocasionou também um desequilíbrio de oferta e demanda. Inicialmente foram atendidos os países mais influentes do Hemisfério Norte, mas uma presença diplomática proativa em um momento em que o Brasil apresentava um destaque importante no cenário internacional, fez com que o SUS fosse contemplado logo em seguida.

A nossa atual presença diplomática no mundo é muito diferente daquela de 2010. Pelo contrário, durante os anos de 2019 e 2020 tanto o presidente da República, quanto seus filhos e o ministro das Relações Exteriores perseveraram em ataques contra a China, seu governo e as vacinas chinesas, entre as quais encontra-se a Coronavac. Mais ainda, em março de 2020, a Índia e a África do Sul apresentaram à OMC uma proposta no sentido de ser decretado um licenciamento voluntário universal, ao largo de eventuais direitos patentários, de todas as vacinas em desenvolvimento contra o Sars-CoV-2. Como seria de se esperar, os países detentores da maior parte das patentes biofarmacêuticas – EUA, Reino Unido, França, Suíça, Japão, com a adesão do Canadá – opuseram-se. E, lastimavelmente, o Brasil colocou-se contra o conjunto de países em desenvolvimento e aliou-se aos desenvolvidos. Isso irritou profundamente a Índia que, aliás, lembrou do fato quando o nosso país foi reivindicar dois milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, que demoraram bastante para chegar.

A crise na oferta de vacinas exige que o país incorpore para o SUS novas vacinas. São principais candidatas a Sputnik V, russa, que depende de uma autorização de uso emergencial e cuja aprovação esbarra no fato de não ter realizado testes clínicos no Brasil, exigido pela Anvisa. Há também a vacina Janssen/Johnson & Johnson, que realizou testes clínicos entre nós e que está por apresentar sua solicitação de uso emergencial à Anvisa.

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