Uma visão da cultura ao longo dos tempos, passando pela frase de Walter Benjamin de que todo documento de civilização é também um registro da barbárie.
Muitas de nossas concepções sobre cultura são herança da Antiguidade clássica. A começar pelo cuidado com a formação do indivíduo (paideia) e os valores morais (areté) que enfatizam o papel da cidade-Estado como educadora dos cidadãos. No Renascimento, o legado configura uma nova mentalidade, ressaltando a subjetividade e o protagonismo do indivíduo na história. O mundo torna-se mais complexo e as manifestações culturais recebem uma autonomia crescente.
No século XVIII, com a ascensão da burguesia, os postulados do contrato, do mercado, da razão aplicada à ciência e do Estado-nação festejam o nascimento da Modernidade. Os valores passam a ser aceitos ou impingidos como universais. Contudo, junto vêm todas as contradições entre os fins particulares e os objetivos gerais da civilização. Injustiças sociais, opressão econômica, conflitos bélicos e corrupção ilustram a tragédia moderna. As disposições classistas assimétricas de produção (Marx) e as ideias e crenças (Weber) refletem as estruturas sociais desigualitárias.
No século XIX e XX, o saber científico e positivo respalda o colonialismo. A Revolução Industrial e a divisão de classes sociais incrementam manifestações culturais. Fala-se em uma separação da alta cultura e da cultura popular, oficial e não oficial, rural e urbana. A indústria cultural e os meios de comunicação de massas se expandem, pasteurizam. Os gostos e os estilos de vida são enquadrados. Pelo poder que concentram, os veículos de mídia corporativa se revelam uma ameaça à democracia. Após a Segunda Guerra, irrompe o debate sobre a consciência empírica e possível.
Desse modo, a cultura se transforma em um permanente campo de batalhas, onde formas simbólicas de dominação abrem uma área específica de pesquisas. As diferenças destacam o multiculturalismo, as subculturas e as etnias na constituição da personalidade individual. Estratos médios da população se entregam ao consumo para imprimir sua identidade e uma capacidade de expressão.
Para os filósofos Agnes Heller e Ferenc Fehér, em A condição política pós-moderna: “Os que preferem habitar a Pós-Modernidade ainda vivem entre modernos e pré-modernos, pois a própria fundação daquela consiste em ver o mundo como uma pluralidade de espaços e de temporalidades heterogêneos”. Em termos políticos, o que caracteriza a conduta pós-moderna é se situar além da perspectiva teleológica das “grandes narrativas” (liberalismo, socialismo, fascismo).
Seduções e desenganos
No emaranhado de atividades diversas, quem procura uma unidade entre o surgimento de mitos, ritos, credos religiosos, obras de arte, teorias científicas deve procurar o denominador comum, não nos produtos, mas no processo criador que promete a transformação pessoal e social, com a unidade da desunião e da ambiguidade. O expressionismo, o simbolismo, o cubismo trazem a multiplicidade cambiante da experiência humana. O surrealismo projeta alternativas à realidade.
Perante um sistema multifacetado, os intérpretes concluem que não há uma Modernidade, senão uma constelação de modernismos em correspondência com a intersecção das classes sociais. Viena pela relação entre burguesia e aristocracia; Berlim pela relação entre burguesia e Estado; Paris em função do peso da pequena burguesia; São Paulo pelo peso da burguesia. Estações de trens e bares permitem aos trabalhadores sair dos bairros marginais para os cenários em ebulição.
Não obstante, pairam dúvidas sobre os discursos demasiado otimistas sobre mudanças com vistas à libertação dos aglomerados subalternos. Na globalização, os discursos se fragmentam. O futuro é um desconhecido. A tecnologia e a informação modificam a percepção do tempo e do espaço. O capital invade todos os escaninhos da sociabilidade que até então não tinham sido mercantilizados, como as praças e escolas públicas e as reservas naturais. Agora corpos e até almas estão à venda.
Sob o teto do neoliberalismo, vivemos cindidos em segmentos sociais com regramentos legitimados pela ordenação pragmática da eficiência, desempenho, produtividade e rendimento que delineia nossas vivências e expectativas na cultura contemporânea. Tal é a lógica cultural do capitalismo tardio. Crescentemente consumimos os símbolos, o espetáculo (televisão, computadores, vídeos) na era das formas – publicidade, desenho, arquitetura. O figurativo (a imagem) supera o discursivo (a palavra). Os políticos sociopatas da extrema direita surfam com desenvoltura na onda.
Hoje o conceito de cultura possui diversas implicações. Vai do conjunto de valores compartilhados num período histórico ao que distingue a identidade nacional, étnica ou sexual. No limite, incita refregas e motivos para matar – Bósnia, Belfast, Ruanda. Pode designar a cultura policial ou da empresa ou do samba sem conexão orgânica. “O princípio inspirador da vida moral ou religiosa, da literatura, da arte, da ciência e da filosofia, bem como de sua organização política ou econômica não casa com o caráter híbrido e plural das formas culturais atuais”, sublinha o sociólogo Josep Picó, no ensaio Cultura y Modernidad: seducciones y desengaños de la cultura moderna.
Um significado último
A economia do conhecimento acumula mais riqueza do que a economia da produção. A linguagem informática é o novo esperanto. O real confunde-se com a imaginação. A coerção cede a vez à sedução para consumir o que, antes, era tido por supérfluo ao revés de básico. O arquétipo ideal do indivíduo neoliberal está vinculado ao mercado por intermédio da pedagogia, não para a cidadania, senão para os passeios no shopping center. Em ambas as situações, a política vai para o escanteio. Contam a estética da mercadoria e a espetacularização do consumo para performar.
A cultura é o trabalho sobre a natureza e o trabalho é exploração. Daí a frase de Walter Benjamin de que todo documento de civilização é também um registro da barbárie. Os meios coletivos de conquistar as metas libertárias da contracultura dos anos 60 são abandonados e esquecidos, sem a sua base política anticapitalista. Já o arcabouço convencional do fazer político (os partidos), sem desfraldar as utopias são postos sob suspeição e, tal qual os sindicatos, perdem filiados.
A cultura precisa reencontrar uma plataforma política que dialogue com a dimensão do social e do econômico, para vencer a fragmentação organizativa e de propósitos. Enfim, para fazer a vida valer a pena ser vivida e a sociedade interagir como uma verdadeira sociedade com os sócios. O valor transcendente da cultura está em materializar os sonhos coletivamente. Não basta denunciar os limites da existência no cotidiano, é necessário forjar os instrumentos de emancipação.
Movimentos que protestam contra alienações reproduzem a reificação através da sua fragmentação. Com efeito, as bandeiras capazes de construir a agenda global forte (o nacionalismo revolucionário, o feminismo, as lutas étnicas e ambientalistas) seguem fora de foco, apesar de a cultura enquanto identidade ser uma continuação da política por outros caminhos. As solidariedades de grupo são subestimadas, secundarizadas, com o que o potencial de mobilização nas ruas diminui.
A cultura como civilidade ou como comercialização não descortina horizontes. Já a cultura como identidade desperta a consciência do povo para a luta pela liberdade e a igualdade. Conforme o professor de Literatura da Universidade de Oxford, Terry Eagleton, em A ideia de cultura: “A cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último”. Que cada um siga o seu coração.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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