É um desafio expor, neste espaço, uma alternativa à ineficaz política de redução dos gastos públicos — já insuficientes para a população — e do equilíbrio orçamentário, cujas metas o atual governo já detonou há muito. No entanto, cabe expor outros caminhos, usando os argumentos da Teoria Monetária Moderna (TMM) e das Finanças Funcionais (FFs) para inspirar a próxima administração federal, como sugerido noutro artigo, anterior.
O primeiro passo é se libertar das tradicionais visões quantitativas da moeda, que prevalecem no mundo ocidental (volume de meios de pagamento mais ou menos como proporção do PIB). O segundo é se interessar pelas proposições de gente que já se foi (Shacht, Abba Lerner, Kalecki, Keynes etc.) e pelas contribuições de novos autores (André Lara Resende e Randall Wray), para entender a teoria das FFs e aplicá-la na busca do pleno emprego e do alcance do PIB potencial (quando não há capacidade ociosa em nenhum setor da economia). O terceiro passo é recompor a capacidade de planejamento do Estado brasileiro, destroçado na década de 1980.
A capacidade de planejar é essencial para se formular uma política que, simultaneamente: (i) expanda a produção de alimentos e bens de consumo correntes, para impedir um choque de demanda que acelere a inflação quando a renda aumentar; (ii) reindustrialize o Brasil, para gerar empregos de qualidade, substituir importações desnecessárias e estimular a reconquista de mercados externos; (iii) amplie a infraestrutura social (escolas, hospitais etc.) e econômica (hidrovias, ferrovias, energia limpa etc.), concluindo projetos ora paralisados e executando projetos novos, de altas taxas de retorno e desinflacionários; e (iv) expanda os meios de pagamento na exata proporção necessária para financiar a utilização plena de nossa capacidade de produção (PIB potencial) e de gerar o pleno emprego. Essa é, em essência, a aplicação da TMM e das FFs para promover o crescimento econômico e melhorias sociais para a população.
Neoliberais e monetaristas ortodoxos contestam essas opções de política econômica diferentes para o Brasil. No entanto nunca analisaram de forma crítica os últimos 14 anos de práticas heterodoxas do governo norte-americano e de seu Sistema de Reserva Federal.
A política monetária dos EUA, por lei, visa a dois objetivos básicos e simultâneos (dual mandate): o controle da inflação e o bem-estar da população, com o máximo de emprego. Com esses objetivos e a determinação de enfrentar e vencer a crise do subprime, em 2008-2009, o governo americano decidiu salvar: (i) a construção civil e o imenso mercado de hipotecas do país, onde se formara a bolha especulativa; (ii) a banca norte-americana e de outros países que também se envolveram nela; e (iii) parte da indústria automotiva (foram compradas as ações de controle da Ford e GM).
Para tanto, o FED adotou uma política conhecida por “afrouxamento quantitativo” (quantitative easing) que perdura até hoje. Entre 2008 e abril deste ano, o Fed adquiriu no mercado grandes volumes de diversos papéis (de títulos do Tesouro a títulos privados, garantidos por hipotecas insolventes). Compras de até U$ 50 bilhões por mês de ativos podres, pelo valor de face e não pelo valor de mercado. Os ativos nos balanços do sistema Fed saltaram de cerca de US$ 800 bilhões, em 2008, para US$ 8,9 trilhões em abril de 2022 (foram multiplicados por 11).
Pesquisas do respeitado Levy Economics Institute, do Bard College, afirmam que o FED System investiu mais de US$ 29 trilhões para sustentar a maior economia do planeta, sem o que o mundo capitalista teria entrado em colapso, na falta de nova ordem alternativa que o substituísse.
Mas o governo norte-americano não quebrou, porque todo esse investimento foi feito em moeda nacional. Em dólares! Isso corrobora um dos principais axiomas da TMM aplicado a países soberanos que não são grandes devedores em moeda estrangeira, como é o caso do Brasil na atual quadra: a emissão de recursos denominados na própria moeda, sem exageros, não desequilibra as finanças nacionais, não gera inflação e permite aumentar o nível de emprego.
A prioridade das FFs para alocar recursos novos deveria ser atribuída a investimentos em políticas públicas de educação e informação sobre direitos, para elevar os níveis muito baixos de instrução e produtividade do grosso da população. Infelizmente, porém, ainda não há bases firmes para uma estimativa confiável da necessidade de investimentos nesse campo.
Outra prioridade importante seria equacionar a dívida dos estados e municípios com a União, passando aqueles a dispor de fundos para recuperar as cidades pequenas, médias e grandes, que hoje abrigam 90% da população. O Brasil precisaria apenas de R$ 1,3 trilhão (US$ 260 bilhões) de financiamentos oferecidos aos estados e municípios para eles quitarem seus débitos com a União mediante a simples conclusão e entrega, em serviço, de projetos prioritários, mas paralisados. Com total transparência e sem orçamento secreto.
Mais R$ 700 bilhões (US$ 140 bilhões) deveriam ser oferecidos e cedidos a fundo perdido pelo governo federal, destinados a novas obras de infraestrutura, prioritárias e de alto retorno econômico e social (desinflacionários, porque reduziriam custos). Em conjunto, os dois programas aqueceriam o setor de obras públicas, grande gerador de empregos.
Além disso, haveria a expansão de financiamentos para aumento da produção de bens de consumo corrente, que, além de mais empregos, seriam capazes de impedir a elevação dos preços dos principais itens do orçamento familiar.
Expansão, sem limite de créditos do BNDES, do BB e de seus agentes, para financiar projetos prioritários de infraestrutura e expansão da capacidade de produção industrial estratégica: bens de capital, química, metalmecânica, eletroeletrônica, automotiva (veículos elétricos), complexo industrial e de serviços da Saúde, material de Defesa e agroindústria.
Como já dito, para tudo isso é preciso recriar uma estrutura de planejamento (que existia há 60 anos atrás) capaz de estabelecer: metas, tecnologias mais apropriadas para o Brasil, análise e seleção de projetos a serem financiados e controle de sua implantação, usando toda a tecnologia da informação hoje disponível. Assim serão dimensionados os recursos financeiros a serem investidos em cada segmento produtivo.
Desde que as empresas interessadas demonstrem a real necessidade, poderiam ser pleiteados mais recursos. Mas cerca de R$ 1 trilhão (US$ 200 bilhões) de créditos para a indústria, em 2023, parecem suficientes para alcançar o PIB potencial e o pleno emprego no curto prazo. Nos anos seguintes, nosso quantitative easing caboclo poderia ser avaliado melhor para acelerar o desenvolvimento brasileiro.
Importa salientar que, se os passos e objetivos acima mencionados forem observados, a expansão econômica e a melhoria nas condições sociais poderão ser feitas sem gerar inflação e sem desvalorização cambial. Foi o que aconteceu nos EUA entre 2008-2020, com uma taxa de inflação média anual de apenas1,94%, ao longo daqueles 13 anos.
De acordo com o Bureau of Labor Statistics dos EUA, a inflação naquele país somente saltou para 9,1% a.a. nos 12 meses encerrados em junho de 2022. Isto porque, nesse período, o aumento médio dos preços da comida foi de 10,4% e os preços de energia (gasolina e diesel) aumentaram exorbitantes 41,6%, em função da guerra em curso, enquanto os demais itens aumentaram apenas 5,9% em um ano. Maus resultados atribuídos ao Governo Biden, mas não por causa da política monetária e das finanças funcionais.
De qualquer sorte, o Brasil poderá exercer sua soberania monetária com equilíbrio, visando estritamente realizar o PIB potencial e o pleno emprego. Podemos assegurar, com os exemplos de Roosevelt, nos EUA dos anos 1930, inspirados em Keynes, e da dupla Ben Bernanke-Janet Yellen, nos EUA depois de 2008, que “o governo não quebra em sua própria moeda e, portanto, não enfrenta limites financeiros para gastar” dentro dos critérios de sensatez das Finanças Funcionais.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Clique aqui para ler “O governo Lula e o desbloqueio do futuro“, de Fernando de la Cuadra e Newton Albuquerque, publicado no O Globo de 27.06.2022.