A vida no Vale tem seu tempo ritmado pela natureza. Há o tempo de plantar e de colher. Para depois plantar e colher novamente. Tudo se renova e se repete como o mesmo. Num ciclo sem fim. Quem tem fim são as pessoas que lá vivem. Entre nascer e morrer são regidos pelo mesmo maestro que comanda a natureza. Repetem-se, estação a estação, na mesma vida rotineira. Que só não é tediosa pelo medo de que alguma anomalia natural lhes perturbe o ritmo.
Num mundo entre a previsibilidade e o medo do imprevisível, como Marcos era estranho! Figura conhecida na região como quase folclórica, entre o patético e o indigno. Possuía uma vaidade que, como o todo do seu ser, era estranha, como que incompleta. Exagerava nos próprios méritos e contava façanhas tão incríveis como contos de fadas, mas de roteiro tão literariamente pobre que as tornava ainda menos críveis que os contos de fadas.
Acreditava ter uma inteligência que não tinha. Um talento que não tinha. Uma esperteza que não tinha. E só não fora completamente excluído daquele povo porque encontrava entre os seus pessoas ainda menos inteligentes, talentosas e espertas do que ele. E bastaram estes poucos para que Marcos, em vez de excluído, fosse alçado à condição de representante do Vale na Câmara.
Os mais sábios ficaram surpresos com a escolha popular e os mais sábios entre os mais sábios, tristes. Havia uma dificuldade em entender o porquê de se confiar função tão importante a alguém tão inepto de tudo. A melhor explicação que alguns sábios encontraram foi a da sua estranheza. Naquela terra de vidas tediosamente vividas, aquela figura patética surpreendia. Nada nele parecia regido pelo tempo que regia a tudo o mais naquele lugar. Seu maestro era outro, incerto, volúvel, leviano, surpreendente.
Suas mentiras descaradas, às quais só as mentes mais ineptas e as mais torpes permitiam-se acreditar, animavam aquela gente pelo ridículo, pelo inusitado ou simplesmente por lhes divertir com suas surpresas. Por isto, mesmo quando desdizia o que antes dissera, estava tudo bem. É dele. É do seu tempo descontínuo onde tudo é sempre novo. Esperavam até com alguma ansiedade para saber qual seria seu caráter naquele dia. Qual fantasia apresentaria a todos com ar sério de quem fala algo relevante. Ele era, enfim, uma novela cômica que entretinha aquela gente entediada e descrente na importância da Câmara ao ponto de transformá-la em palco para Marcos lhes distrair das durezas da vida com suas bizarrices.
Mas o desafino do tempo cobra seu preço. O cômico de Marcos tornou-se trágico quando resolveu apoiar na Câmara os planos de mudança daquela terra. Uma gente estrangeira daquele lugar queria transformá-lo em fábrica. Para ganhar dinheiro naquela terra, mas sem a gente daquela terra. Queriam mudar o tempo daquela terra porque para eles tempo é dinheiro, enquanto para os da terra, tempo é vida.
Empolgado com a ideia, Marcos pôs toda sua mediocridade a serviço dos estrangeiros. Mentiu e rementiu. Desmentiu-se e disse o que desdisse só para parecer fazer sentido suas histórias sem sentido e harmonia. Pateticamente, manjou seus opositores em busca de artifícios que os injuriasse. Difamou e caluniou autoridades com a maturidade de uma criança e a irresponsabilidade de um criminoso.
Tornou-se outro tipo de ridículo. Não mais o curiosamente surpreendente, mas o desagradavelmente ridículo. E foi só então que aquela gente percebeu que o tempo de Marcos era como o dos outros daquela terra. Um ciclo do mesmo sempre. Das mesmas infantilidades sempre. Da mesma inapetência sempre. Da mesma falta de lógica sempre. Sem graça. Um sujeito de espírito raso e perdido, com a infeliz ambição de carregar a todos para as profundezas de sua perdição.
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Ilustração: Mihai Cauli
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