Americanos em vertigem
– Os EUA radicalizam cada vez mais e claramente buscam construir uma segunda “cortina de ferro”, não dando qualquer sinal de aceitar negociação na guerra Rússia/Ucrânia.
– Empurram China e Rússia para o outro bloco.
– Isso não significa um mundo “multipolar”, se entendermos multipolar como algo benéfico. Nada disso. Os americanos querem o que sempre incentivaram em seus filmes, um mundo binário, de “eles contra nós”, “mundo livre x ditaduras” e blá-blá-blá. O mundo da primeira Guerra Fria. A história em looping.
– Os norte-americanos enxergam essa tática como única forma de conter os chineses, separando o mundo em dois, pela força das armas (onde ainda têm a preponderância), na impossibilidade de manterem eles mesmos a supremacia, como tiveram após o colapso da União Soviética.
– Nessa divisão binária buscam empurrar a “fronteira” para leste e para oeste. No Pacífico, tentam cercar a China. No lado atlântico, já obtiveram obediência incondicional dos melancólicos ex-impérios da Europa, mais o leste europeu, a Escandinávia e o Báltico.
– Tentarão prolongar a guerra na Ucrânia e podem repetir o que ocorreu na Coreia em 1953 (uma trégua sem paz), com o novo “paralelo 38” sendo estabelecido em algum ponto do leste da Ucrânia, de maioria étnica russa, mas mantendo a necessidade de permanente mobilização militar russa, como ocorre, aliás, com a Coreia do Norte, o que sempre tem um alto custo financeiro e político.
A Europa de joelhos
– Na Europa, aparentemente só restarão a pequena Sérvia (eslava e cristã ortodoxa) e a Belarus ao lado do bloco China/Rússia.
– O ímpeto americano pode ser medido pela destruição terrorista que promoveram dos gasodutos nord stream, como denunciado pelo respeitado jornalista Seymour Hersh.
– A imprensa “ocidental” (a central e a periférica) fica entre o silêncio, a assessoria de imprensa da Casa Branca e a tergiversação, sem que ninguém se digne a também investigar para confirmar ou refutar Hersh, um jornalista Pulitzer de 86 anos.
– Os noruegueses, coadjuvantes no terrorismo contra o nord stream (segundo Hersh), tão modernos, socialmente admirados e, constatamos, moleques de recado. Os alemães, ao que tudo indica, se acostumaram desde Versalhes com humilhações, só foram à forra conosco, no futebol. A Inglaterra se tornou definitivamente o 51º Estado da federação estadunidense. A França de vez em quando grita, mas Washington e Moscou nem ligam. A Itália, imersa em retrocesso político desde os anos 80, nem grita.
– De comum, entre os europeus, além da genuflexão aos EUA, os “perigosos inimigos comuns”: os imigrantes. Agora também os russos. Ah, em todos os países cresce a extrema direita.
– E o Tribunal de Haia… aguardamos para os próximos dias a expedição dos mandados de prisão contra Bill Clinton, George Bush Filho, Barack Obama e Hilary Clinton por crimes contra a humanidade.
O outro gigante asiático
– A Índia… ainda incerto o caminho que trilhará nessa divisão. Pela importância geopolítica já deve ser nos bastidores alvo prioritário dos dois blocos.
– Viveremos tempos muito mais perigosos se ambos os blocos não aceitarem uma Índia não alinhada. Creio ser intolerável aos dois lados que a Índia se junte a um bloco que não o seu. Duvidoso que a China aceite uma “Ucrânia” daquele tamanho em sua fronteira ou que, por outro lado, os EUA admitam a união entre os dois países mais populosos do mundo.
– Fato é que o País de 1,3 bilhão de habitantes e muitas armas nucleares não é propriamente a Ucrânia para ser tratado como marionete.
O imperialismo soft da China
– Nesse cenário, o que esperar do Brasil?
– A posição brasileira tem desagradado a esquerda, a qual, por abundantes e justificados motivos históricos, não quer um Brasil alinhado aos americanos.
– Americanos, chineses… impérios são impérios. Os que ainda não se mostraram nefastos é porque não tiveram tempo suficiente ou ainda não são impérios.
– A China canta aos quatro ventos que não interfere em assuntos internos. Mas será que para isso precisa dos maus modos dos americanos, que adoram mostrar os músculos, reais ou digitais (da guerra híbrida)? Não basta comprar tudo que é produzido, gerar dependência e impor preços?
– Recomendo a quem não conhece que, se puder, visite os estados do Centro-Oeste e do Norte para ver o efeito social, político e econômico causado por um império disposto a comprar vorazmente produtos primários. Os biomas do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia resistirão? Até aqui estão perdendo a briga. Se há demanda, conseguiremos regular a oferta?
– Não é “só” a questão ambiental que está em jogo. Formou-se uma nova elite política agroexportadora, semelhante em alguns aspectos a dos cafeicultores dos séculos XIX e XX, também concentradora de renda e que tentará do mesmo modo impor sua agenda ao País. Já consegue, em grande medida.
– Lembro, ainda, que China e Rússia também puxaram nosso tapete no conhecido mas já distante episódio em que, no segundo governo Lula, conseguimos obter do Irã a aceitação de um acordo nuclear. Os americanos ficaram com a má fama sozinhos, injustamente. Para quem não sabe ou não se lembra, está lá no livro do Celso Amorim: “Teerã, Ramalá e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva”.
– Ah, nenhum deles apoiou nosso ingresso como membro permanente no Conselho de Segurança da ONU. Não interessa um novo ator na política internacional, isso os dois lados concordam.
E nós nisso tudo
– Então, temos força para não nos alinharmos nessa briga? Espero que sim. Mas acredito que virou uma luta de morte para o império americano e China e Rússia podem se cuidar sozinhas. Não é o momento de soft power, mas de mostrar força, que não temos.
– Diante da radicalização americana e sua clara disposição de dividir o mundo para não sucumbir à força chinesa, está indefinidamente adiada a possibilidade de o Brasil mediar o conflito Rússia/Ucrânia. Suspeito que na visita aos EUA, Lula ouviu isso diretamente de Biden, ainda que em linguagem diplomática.
Nossa cozinha
– Lembremos, estamos ainda frágeis internamente, lutando contra o fascismo e contra o neoliberalismo, ambos fanáticos. Quase sempre estão misturados. Guedes foi um dos poucos ministros que se manteve em todo governo Bolsonaro.
– Nesse cenário, não nos interessa uma derrota geopolítica do governo Biden, não importa o quanto seja justa nossa ojeriza contra o imperialismo americano. A opção a ele é Trump ou algo assemelhado e, consequentemente, explícito apoio aos nossos fascistas e neoliberais.
– Eu sei que em 2016 o golpe contra Dilma teve apoio do partido democrata americano, claro que sei, mas desde lá eles tiveram Trump e nós Bolsonaro. Hoje temos um inimigo interno comum e, para eles, sejamos honestos, ter Bolsonaro por aqui tem menos relevância do que, para nós, ter um Trump por lá.
– China e Rússia são países geográfica e culturalmente distantes, com pouca ou nenhuma interlocução por aqui, o que podem fazer contra os adversários internos da nossa democracia, ainda que queiram?
– Biden, Xi Jinping e Putin prontamente legitimaram a vitória de Lula, além de todas as democracias liberais europeias. Qual apoio teve mais relevância para eventualmente conter o golpismo militar, aliado e ao mesmo tempo nascedouro do fascismo tupiniquim?
Objetivos realistas
– Nesse cenário talvez tenhamos espaço para impulsionar a união sulamericana sem ter os americanos para atrapalhar. Também devemos restabelecer laços econômicos e culturais com a África, como nos primeiros mandatos de Lula, que ainda eram iniciais, mas que de todo modo foram rompidos já no governo Temer.
– Só teremos alguma relevância no mundo se nos unirmos no médio prazo aos demais pobres e alijados da geopolítica mundial, o sul global, aqueles para quem EUA, China, Rússia ou mesmo a decadente Europa não pedem licença para nada. Nisso é que temos que nos concentrar, penso. Como disse Pepe Mujica em entrevista recente, o Brasil é muito grande para a América do Sul, mas, sozinho, pequeno para o mundo.
– Para nós, muito mais relevante do que brigar por Rússia ou Ucrânia, EUA ou China é que a direita (neoliberal e/ou fascista) não ganhe a eleição argentina deste ano.
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Ilustração: Mihai Cauli
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