Como a esquerda latino-americana derrotou a extrema direita?

Para Vladimir Safatle, o filósofo lacaniando, as eleições latino-americanas indicam que o o eleitores estão rechando o modelo neoliberal.

Há três ou quatro anos, nem os membros mais otimistas do Foro de São Paulo, rede regional de partidos progressistas latino-americanos, fundada em 1990, poderiam imaginar que fosse possível a realização de uma Cúpula de todos os presidentes da América do Sul.

Naquela época, os governos conservadores – em alguns casos de extrema direita – dominavam quase toda a região, de Brasília a Bogotá, passando por Buenos Aires. “Neste momento, estamos perante uma ofensiva ultraneoliberal (…) que utiliza golpes, redes de notícias falsas, guerra judicial, bloqueios e sanções, ameaças militares, repressão e autoritarismo”, lamentou a secretária-executiva do Foro, Mónica Velante, em 2020.

Três anos depois, tudo mudou. A América Latina é a única região do mundo em que os partidos de esquerda prevaleceram sobre uma próspera extrema direita populista que está em ascensão em todo o mundo. Claro, quase todos os governos progressistas da América Latina – com a notável exceção de Andrés Manuel López Obrador, no México, que manteve sua popularidade com um discurso agressivo contra o neoliberalismo – são politicamente fracos e enfrentam uma oposição organizada no Congresso.

Qual foi o segredo do sucesso eleitoral da esquerda latino-americana em suas batalhas contra a extrema direita de Jair Bolsonaro (Brasil), José Antonio Kast (Chile), Fernando Camacho (Bolívia) e os candidatos uribistas na Colômbia? O que a esquerda tem que fazer para se manter no poder?

São questões de grande relevância para a Espanha, cujas últimas inovações políticas – tanto à esquerda (Podemos) quanto à direita (Vox) – foram inspiradas no populismo latino-americano.

Em entrevista concedida em São Paulo e publicada no La Vanguardia, Vladimir Safatle, filósofo brasileiro e uma autoridade na filosofia da psicanálise de Jacques Lacan e da escola de Frankfurt, deu algumas pistas sobre o sucesso da esquerda latino-americana. Nascido no Chile, mas cidadão brasileiro, Safatle é autor de vários livros sobre a ascensão da extrema direita e a resposta do progressismo em ambos os lados do Atlântico. Seu último trabalho em espanhol é “Maneiras de transformar mundos” (Prometeo, 2023).

Estes são seus principais argumentos e conselhos:

1- É preciso evitar a passagem para um centro consensual em torno de um modelo neoliberal diluído. Alianças contra a direita não devem ser pretexto para enfraquecer o programa na área sócio-econômica-laboral. O eleitorado na América Latina e na Europa está rejeitando fortemente o centro. No Brasil, partidos socialdemocratas como o PSDB foram varridos do mapa eleitoral nas eleições de 2018 e 2022, devastados pela ascensão do bolsonarismo. O Partido dos Trabalhadores (PT) é quase o único que sobreviveu do antigo sistema.

  • Não acho que seja preciso ir tanto para o centro para ganhar as eleições porque o centro está ingovernável (…) no Brasil não tem mais centro-direita; a extrema direita já vai ocupar o espaço do que era da direita. E será comandado por outras figuras, além de Bolsonaro, como o atual governador de São Paulo Tarcísio de Freitas”.

“No Chile, Boric chegou ao poder paralisado”, diz Safatle. Isso apesar de “existir um descontentamento muito forte e uma crise do modelo neoliberal”. É preciso entender que há questões sociais e trabalhistas por trás da ascensão da ultradireita. Qualquer aproximação a um espaço para um novo consenso neoliberal contra o populismo de direita será suicida.

  • “Durante a campanha, conversei com muitos grupos em São Paulo, motoristas de Uber, por exemplo. São quase todos bolsonaristas, por uma vontade geral de serem deixados à vontade para ganhar o pouco dinheiro que ganham, sem lhes impor novas hierarquias.”

2- Mesmo que você faça parte de uma aliança ampla e com uma oposição que bloqueia, você deve manter um programa de mudança transformadora.

“Lula acredita que a correlação de forças está contra ele, mas acredito que ele tem que promover medidas que mudem essa correlação e não está fazendo isso. Mesmo que a oposição bloqueie o programa no Congresso, é importante que as pessoas vejam que o governo tem uma agenda de mudanças profundas e que é preciso se mobilizar fora do Parlamento”.

3- O feminismo é parte essencial de uma política de classes. É preciso entender que as demandas na área socioeconômica são, basicamente, as mesmas que na área de racismo, machismo, homofobia, etc. “Se há algo que os protestos no Chile, em 2019, nos ensinam é que as lutas por reconhecimento – feministas, indígenas, antirracistas – são uma parte necessária e decisiva da luta de classes”, disse Safatle.

“As derrotas na flexibilização dos direitos dos trabalhadores são derrotas para a luta feminista (…) o que o Chile mostra é que a luta feminista atinge sua força máxima quando expõe suas dimensões de luta de classes”, diz ele. “Essas lutas por reconhecimento são fundamentais para a igualdade e a justiça social e não são lutas de identidade; são lutas universais.”

“Este universalismo não existia até agora. Apenas, talvez, na revolução haitiana (1791-1804), na Comuna de Paris (1871) e nos primeiros anos da revolução russa (1917). Todo o resto foi baseado em formas de expressão que vêm do colonialismo. O Chile de 2019 foi muito interessante porque houve uma articulação entre diferentes demandas sociais. Também devemos entender que, às vezes, a luta de classes é uma política de identidade. Classe também é identidade. O problema tem sido como vincular essas lutas. Em muitos casos, a esquerda usa as lutas de reconhecimento (feminismo, indigenismo, antirracismo, pró-LGBTQ) para esconder a ausência de um plano de transformação mais amplo. Colocamos áreas como feminismo, antirracismo, direitos gays e trans na vanguarda da luta, sem dar nenhum apoio ao resto. Isto é um erro. Eles são parte da mesma coisa.”

4- O contato e o diálogo com os trabalhadores que votam na direita são essenciais. Em áreas sensíveis da guerra cultural, você tem que se manter firme na defesa dessas lutas de reconhecimento, mas tem que explicar isso para as pessoas e não assumir posições moralizantes ou agressivas. “No Chile, no processo constitucional, esqueceram completamente que é preciso explicar as coisas ao povo. Por exemplo, o estado multinacional. Esse conceito é uma grande conquista da política latino-americana. Mas você tem que explicar bem. No Chile, começaram com um discurso em mapuche. Isso apenas 1% da população poderia entender. O resultado da falta de atenção em explicar bem os planos é que o derrotado candidato da extrema direita, José Antonio Kast, já controla a Constituinte”.

5- Notícias falsas não são o problema, mas o sintoma do problema. “Nada pode ser feito de cima contra as notícias falsas. Você tem que se aproximar das pessoas, ouvir e conversar, coisa que a gente não faz mais. Sou um leitor da Escola de Frankfurt e essa questão não é nova. Surgiu na análise do fascismo entre os frankfurtianos nas décadas de 1940 e 1950. Teodoro Adorno disse claramente: “As pessoas não estão sendo enganadas, as pessoas querem ser enganadas”. Essa é a questão. Se fosse apenas uma questão de serem vítimas de engano, ao lhes mostrarem a verdade, as pessoas se dariam conta. Mas não é assim. Há uma impossibilidade estrutural de retificação. Não importa quantas correções façamos, as pessoas não vão mudar de ideia. E isso porque elas não querem mudar. Há uma clara vontade de afirmar o seu pertencimento a um grupo que oferece uma alternativa e nesse grupo – redes de extrema direita – são partilhadas notícias falsas ou verdadeiras.”

6- A linguagem tem que ser de transformação. Não dá para copiar as táticas da extrema direita para combater as fake news e os embustes da direita, como tentou fazer André Janones (responsável pela rede de campanha do PT que adotou alguns dos métodos do gabinete do ódio de Bolsonaro). Segundo Safatle, “A luta política é uma luta de linguagem. Não é possível adotar um discurso de transformação com uma linguagem de não transformação. As narrativas mais utilizadas hoje vêm da indústria cultural e do cinema de ação e marketing. A direita tem usado isso de forma formidável. É sua subjetividade natural. Janones está dizendo que não há outra gramática. Isso é dar-lhes razão.”

7- Devemos ir além da defesa da democracia liberal. “O que está acontecendo na Espanha é mais um indício de que a ascensão da ultradireita não é algo pontual, mas um fenômeno estrutural em um momento histórico que parece ser o esgotamento do modelo de democracia liberal. A extrema direita em escala global operará cada vez mais como uma força ofensiva anti-institucional”, diz Safatle.
(Publicado na Contexto y Acción em 13/06/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Tradução: Eduardo Scaletsky
Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
 

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