O tema da independência do Banco Central (BC) é recorrente entre os defensores do financismo e da agenda neoliberal para o Brasil e para o mundo. Desde há muito tempo que esse pessoal da elite do sistema financeiro insiste na lenga-lenga de que a economia é assunto muito sério para ser deixado nas mãos dos políticos eleitos, pouco importando a legitimidade conferida a eles pela população nas urnas. Assim, o mesmo raciocínio vale para duas dentre as principais dimensões da política econômica, quais sejam a política monetária e a política cambial. E ambas são da competência do BC de acordo com nossa tradição legal e institucional.

Aos olhos do povo da finança, pouco importa que o BC tenha sido criado em 1964 logo depois do golpe militar de 1o de abril, por meio da Lei n o 4595. Ele foi constituído a partir de extinção da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) do Banco do Brasil (BB) e tomou a forma jurídica de uma autarquia vinculada ao governo federal. Assim, o BC já nasce com um certo grau de autonomia, uma vez que os membros de sua diretoria deveriam ser indicados pelo presidente da República, mas a efetivação dependia de aprovação pelo Conselho Monetário Nacional. O modelo atravessou décadas e foi mesmo incorporado pela Constituição de 1988, com a novidade de que os membros da diretoria do BC deveriam ser aprovados pelo Senado Federal antes da nomeação pelo presidente da República.

Apesar do livre trânsito que sempre foi exercido pelos representantes do financismo sobre a direção do BC, o fato é que essa turma nunca se deu por satisfeita. Queriam porque queriam aprofundar ainda mais a autonomia do órgão, buscando uma quase independência em relação à institucionalidade da dinâmica político-eleitoral que se seguiu à democratização no período posterior ao fim da ditadura militar. A oportunidade surgiu em 2021, durante o mandato de Bolsonaro e o poder exercido pelo superministro da Economia, Paulo Guedes. A partir de um projeto enviado pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar no 179, na qual foi estabelecido o mandato fixo para os diretores do órgão. Assim, por exemplo, Lula tomou posse em janeiro de 2023 com a presença de todos os nove integrantes do colegiado indicados ainda na gestão bolsonarista. A substituição dos mesmos foi feita de forma paulatina e apenas dois anos depois é que o presidente da República eleito pela maioria da população conseguiu indicar o dirigente máximo do BC e compor a maioria de sua diretoria.

Financismo quer independência completa do BC

Ocorre que nem mesmo assim o financismo satisfez seu apetite. Em novembro de 2023, ainda com Roberto Campos Neto (RCN) exercendo a presidência do BC, foi articulada a apresentação de um projeto bastante polêmico no interior do Legislativo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n o 65. O texto protocolado de forma coletiva por 42 senadores, em um espectro que vai do PSB ao PL, terminou por unir parlamentares protagonizados pela extrema direita com apoio mesmo de alguns progressistas. A proposição recebeu logo de início o apoio entusiasmado de RCN e da diretoria do banco.

No entanto, a reação da maioria do sistema político não foi lá muito favorável à proposta apresentada. Com a substituição de Gabriel Galípolo para o cargo de presidente do BC no início de 2025, o movimento de apoio à medida sofreu um recuo estratégico. Apesar disso, o relator da medida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado Federal não colocou nenhum freio definitivo em suas articulações. O senador Plínio Valério (PSDB/AM) parecia ganhar tempo e aguardar uma conjuntura mais favorável para avançar com seu relatório. Apesar da importância e sensibilidade da matéria, foi realizada apenas uma audiência pública a esse respeito, muito longe do debate necessário. Afinal, as mudanças sugeridas implicam na transformação do estatuto jurídico do BC, que deixaria a condição de autarquia federal para se converter em uma empresa pública.

Com isso, os valores orçamentários do órgão seriam retirados do Orçamento Geral da União e passariam a fazer parte da contabilidade de uma empresa que se rege por regras e parâmetros externos à administração direta. Os valores trilionários do Balanço do BC, por exemplo, passariam a ser operados pela direção do órgão sem nenhum controle efetivo por parte do governo ou da sociedade. Assim, por exemplo, a contabilidade do BC demonstra que seu ativo patrimonial é superior a R$ 4 trilhões em julho de 2025. No exercício de 2024, por outro lado, foi registrado um lucro contábil de R$ 270 bilhões. Como ficaria a distribuição deste valor puramente fictício caso o banco fosse atualmente uma empresa pública?

PEC 65: golpe na democracia

Outro detalhe malandro da proposição refere-se aos mecanismos de controle das contas e das atividades do BC no modelo proposto na PEC. O texto menciona genericamente a responsabilidade do Congresso Nacional para se ocupar de tais funções. O modelo ficaria completamente fora de qualquer controle efetivo:

  • (…) “I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional;
  • II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.” (…) [GN]

Mais recentemente, na dinâmica política mais geral entrou em cena o debate a respeito do PIX, a partir das sanções impostas pelo presidente estadunidense. Dentre as inúmeras aberrações e agressões adotadas ou ameaçadas por Trump contra o governo e a sociedade brasileira consta a reclamação de que o modelo inovador brasileiro estaria prejudicando empresas financeiras dos Estados Unidos. A partir dos procedimentos verificados na “Investigação da Seção 301 sobre Práticas Comerciais Desleais no Brasil”, a intenção da equipe de Trump é defender as empresas daquele País e atacar o que considera práticas desleais de nosso País:

  • (…) “O Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo” (…) [GN]

Golpe do PIX: cortina de fumaça

A oportunidade do faro político falou mais alto. Assim, o relator decidiu incluir em seu parecer um dispositivo assegurando que o modelo do PIX não poderia ser objeto de negociação nem transferido pelo BC, além de estabelecer sua gratuidade para pessoas físicas. O texto adicionado é o seguinte:

  • (…) “Art. 9º Compete exclusivamente ao Banco Central a regulação e operação do arranjo de pagamentos de varejo PIX e da correspondente infraestrutura do mercado financeiro, sendo vedadas suas concessão, permissão, cessão de uso, alienação ou, por qualquer título, transferência a outro ente, público ou privado, observados os seguintes princípios:
  • I – gratuidade de seu uso por pessoas físicas;
  • II – acesso não discriminatório aos serviços e à infraestrutura necessária ao seu funcionamento;
  • III – eficiência, contabilidade e qualidade dos serviços; e
  • IV – segurança em sua utilização, inclusive quanto à prevenção e combate a fraudes.” (…) [GN]

O detalhe é que o argumento a ser utilizado pelos defensores da banca no Senado para recuperar o apoio à PEC 65 passará a contar, a partir de agora, com a boa receptividade que a sociedade manifesta quanto ao PIX. Sem dúvida alguma a medida propiciou a ampliação do acesso ao sistema bancário por setores e grupos sociais até então marginalizados. Além disso, a natureza gratuita do serviço destoa da grande maioria daquilo que os bancos oferecem a seus clientes. Exatamente por isso, a maioria da população apoia e é simpática ao PIX. Caberá às forças progressistas impedir que esse método de enganação progrida sem o necessário debate esclarecedor.

Na verdade, a defesa da soberania nacional e a criação de obstáculos para que o PIX entre em alguma negociação com o governo estadunidense não precisam de alteração constitucional. Bastaria um compromisso explícito do governo ou uma Medida Provisória tratando do tema. A intenção do senador Plínio Valério vai na direção oposta: ele espertamente pretende pegar carona em um jabuti popular que ele mesmo introduziu em seu relatório para criar uma cortina de fumaça e escapar do debate dos malefícios generalizados que caracterizam a PEC 65 – a independência completa e absoluta do BC.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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