História é movimento, transição, construção. Nesse processo, é fundamental o respeito às referências, aos aprendizados, aos caminhos e processos nos quais estamos. Não é preciso sempre reinventar a roda, mas é preciso ter em mente que, sobre ela, é possível avançar, retroceder ou mudar de trajetória. Nesse sentido, impressiona o “desapego histórico” da atual discussão sobre o combate à pobreza no Brasil, que se dá à margem de institucionalidades coletivamente construídas e que engendra armadilhas que podem tornar-se a antítese daquilo que se procura promover: proteção social e equidade.

O Brasil nunca assumiu uma linha de pobreza oficial porque, em última instância, isso implica assumir um orçamento anual e comprometido com as políticas públicas que buscam combatê-la. Diferentes linhas de pobreza delimitam diferentes conjuntos de pessoas consideradas pobres e a tendência tem sido adotar limiares baixos de forma a minimizar gastos públicos, mantra neoliberal dos últimos anos atropelado pela crise global. O Programa Bolsa Família (PBF) utiliza como critério de acesso aos seus benefícios o limite de R$ 178, enquanto a linha que mede a miséria nos países subdesenvolvidos é cerca de R$ 150 e a linha recomendada pelo Banco Mundial para países de renda média-alta, como o Brasil, é em torno de R$ 420. O valor médio do benefício do PBF é inferior a R$ 200 mensais por família. Ressalta-se que não existem mecanismos de reajustes regulares previstos para os valores nominais das linhas de pobreza e dos benefícios que permanecem estagnados por anos, corroendo o poder de compra dos mais destituídos.

Ainda assim, o PBF possui importância imensa, inovador em escopo e abrangência na história da assistência social brasileira, sendo muitas vezes a linha tênue que salva pessoas da fome e da miséria absoluta. Nesse Brasil de contrastes, ainda temos cerca de 6% da população que vive com níveis de pobreza similares aos países mais subdesenvolvidos. Em março desse ano, o PBF atendia pouco mais de 13 milhões de famílias e estimativas apontavam para uma fila de espera de mais de 1 milhão de famílias para acesso ao programa. Segundo a PNAD Contínua, a proporção de domicílios que recebiam PBF caiu de 15,9% em 2012, para 13,5% em 2019. Cai a cobertura justamente em um período de crise econômica recente forte com aumento do desemprego, no qual o programa poderia ter atuado de forma anticíclica e preventiva de maiores privações.

Como agravante, o PBF não é um direito assegurado às famílias que cumprem os critérios de acesso, ficando sua concessão ao sabor de orçamentos e governos. Essa questão é tão importante que a mesma pesquisa apontou aumento na proporção de domicílios que recebiam Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) no mesmo período (de 2,6% para 3,7%). Previsto como direito constitucional, o benefício tem cobertura mais restrita que o PBF (destinado apenas aos idosos e portadores de deficiência com rendimento familiar menor que ¼ do salário mínimo per capita), mas possui maior impacto econômico porque paga um salário mínimo de benefício. Essa diferença se reflete no rendimento domiciliar per capita médio entre aqueles que recebiam PBF (R$ 352) e aqueles que recebiam BPC/LOAS (R$ 755).

A concessão do Auxílio Emergencial (AE) como forma de atenuar os efeitos da pandemia sobre a segurança econômica dos mais vulneráveis, ao elevar substancialmente o valor médio dos benefícios do PBF para R$ 600 (até dois por família e o dobro para famílias monoparentais femininas) e ampliar cobertura para aqueles com renda familiar per capita menor que R$ 522,50 já provocou um impacto econômico extraordinário na vida das famílias atendidas, conforme apontam dados da PNAD-Covid, pesquisa por telefone implementada pelo IBGE nesse período para medir os efeitos da pandemia.

Em junho, 29,4 milhões de domicílios (43%) foram beneficiados com o AE de valor médio de R$ 881, que foi responsável por aumentar o rendimento médio per capita dos 10% com menores rendimentos de R$ 7 para R$ 272. Para além dos aspectos sociais e humanos de manter uma renda mínima familiar digna, os recursos transferidos à população mais pobre são totalmente revertidos em consumo, com impacto positivo nas economias locais.

Entretanto, proteção social não se resume ao combate imediato a uma situação de pobreza, emergência ou calamidade. William Beveridge, ao apresentar sua proposta de recuperação para a Grã-Bretanha em 1942, apontou três premissas básicas que se constituiriam nos pilares da seguridade social moderna: suporte às famílias; sistema de saúde universal; e compromisso do Estado na promoção do pleno emprego. Países que estruturaram seus sistemas de proteção social sobre essas bases apresentam cobertura contra riscos sociais ao longo de todo ciclo de vida dos indivíduos (em particular nas fases mais vulneráveis — infância e velhice), ações mais imediatas de enfrentamento de eventualidades (desemprego, doença, incapacitação para o trabalho) e de alívio da pobreza. São também os países com menores níveis de desigualdade social.

A desmercantilização de bens e serviços promove o bem-estar dos indivíduos de forma independente das suas relações de trabalho e é crucial para a promoção de equidade. Ela se dá pela provisão de serviços públicos (saúde e educação, principalmente) e transferências de renda de caráter universal. São medidas consideradas preventivas à situação de pobreza por transferirem uma renda de forma incondicional, independentemente da renda individual ou familiar (a Renda Básica encontra-se nessa categoria). No mosaico de políticas e programas da proteção social, somam-se a esses os benefícios mais centrados nas relações de trabalho, condicionados ao histórico de contribuições dos indivíduos (seguro-desemprego, auxílio-doença, aposentadorias e pensões) e ações de assistência social direcionadas aos mais pobres e vulneráveis, como os programas de renda mínima (como o PBF), subsídios à moradia e acompanhamento socioassistencial.

A partir desse referencial, os sistemas de proteção social americano e latino-americanos são historicamente considerados inconclusos e de escopo e cobertura muito limitados, características escancaradas pela pandemia do novo coronavírus. A proteção social é reduzida ao conjunto de medidas direcionadas ao alívio imediato da pobreza mais extrema. Essa concepção mais estreita da proteção social é condizente com o avanço do neoliberalismo e a minimização do papel do Estado a partir dos anos 90. São programas de custo muito baixo, em torno de 2% do PIB, que ao invés de se constituírem “a última rede de segurança” (safety nets) para indivíduos que não foram suficientemente contemplados pelos demais instrumentos de proteção social ao longo do seu ciclo de vida, invertem seu posicionamento para o principal, quando não único, instrumento de alívio da pobreza.

A Constituição Cidadã de 1988 colocou o Brasil, pelo menos formalmente, numa situação diferenciada nesse grupo de países. O desenho institucional da Seguridade Social Brasileira é claramente inspirado no modelo beveridgiano e considerado uma conquista das lutas históricas por reconhecimento dos direitos da classe trabalhadora e dos mais desfavorecidos. Baseia-se no tripé “Previdência Social, Assistência Social e Saúde”, que, em conjunto com a provisão pública de educação básica e superior, formam a base da proteção e promoção social com garantia de provisão de bens e serviços desmercantilizados.

Em particular, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) possibilita a prática organizada, integrada e efetiva dos serviços de assistência social nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS). É organizado em função da complexidade do atendimento, de forma descentralizada nos municípios, onde os centros de referência acompanham as famílias mais vulneráveis, encaminhando-as aos diversos serviços e benefícios assistenciais, incluindo inscrição em programas sociais e proteção à violência doméstica. Esse arcabouço institucional, embora subfinanciado e com serviços crescentemente precarizados nos últimos anos, poderia ter se transformado em uma potência no combate à Covid-19, principalmente nas comunidades mais pobres, através do trabalho conjunto de Agentes Comunitários de Saúde e assistentes sociais.

No entanto, a discussão hoje não dialoga com as questões fundamentais aqui apontadas e tampouco busca reforçar as institucionalidades já existentes. Por um lado, parece haver, finalmente, um reconhecimento do papel do Estado na segurança econômica das pessoas, inclusive entre os mais liberais, mas a quem interessa o “desapego histórico-institucional” e o reducionismo do atual debate? As sinalizações iniciais do Ministério da Economia para a substituição do PBF consistem na junção de diversos benefícios sociais contributivos e não contributivos em um único beneficio de valor um pouco mais elevado que o PBF e “voucher” de R$ 250 para auxílio-creche. Os dados mostram que esse nível de benefício não é só insuficiente, é indigno. Ademais, qual sentido de transferir renda para as pessoas pagarem privadamente o que hoje elas obtêm como serviço público em educação, saúde, previdência e saneamento?

Não é possível combater efetivamente a pobreza com renda mínima dissociada de outros mecanismos protetivos e da provisão de serviços públicos de qualidade. Para isso, o debate precisa estar associado à urgente revogação do teto de gastos sociais e às propostas de reforma tributária de caráter redistributivo. Sem isso é apenas mudar as peças de um jogo que já vem sendo jogado, com os problemas já conhecidos. Que a instauração da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica possa promover essas discussões de forma compromissada com a vida dos que mais precisam e com o objetivo de uma sociedade mais justa.

Referências: Cobo, Barbara (2012). Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez Editora. Lavinas, Lena (2020). Brazil: COVID-19, UBI, and ultraliberalism. Disponível em: https://basicincome.org/news/2020/07/brazil-covid-19-ubi-and-ultraliberalism/