O Brasil atinge o terceiro mês sob a COVID-19 nas primeiras posições do mundo em termos de casos e óbitos. E, ao que tudo indica, continuamos em curva ascendente da doença, com consequências ainda mais trágicas para as próximas semanas. Gostaria de salientar dois aspectos importantes a partir dos números consolidados ao longo do tempo. O primeiro diz respeito à propagação seguindo um padrão característico: a existência de um patamar inicial, no qual a disseminação da doença é mais rápida onde a desigualdade é menor, e um segundo momento, no qual países mais desiguais demonstram mais dificuldade de controle da doença, com escalada de casos. Esta hipótese, se comprovada, explicaria um fenômeno vivido no Brasil, especialmente nas capitais menos conectadas ao tráfego internacional (vetor inicial da disseminação da doença) e cidades de médio e grande porte no interior do país.

A doença chega pelas classes mais abastadas e quanto maior a desigualdade, mais tempo ela leva para atingir índices de transmissão comunitária significativos nos extratos menos favorecidos da população. Este lapso de tempo é crucial na percepção de risco e na adoção e manutenção de medidas de contenção da doença. Voltaremos a este ponto mais adiante.

O outro aspecto é o da comunicação e informação oficial, de Estado, sobre a doença e as formas de contenção. Sabemos que o país opera um regime federativo, com municípios, estados e união com autonomias subjacentes, e eleições diretas para cada nível, de maneira intercalada. Isso implica em divisões e alinhamentos políticos diversos, conforme a conjuntura, em cada instância administrativa. Um cenário de polarização política extrema, como o que vivemos, pode ampliar os impactos de uma pandemia, a depender da forma como cada ente político se comporta neste sistema federativo.

No caso brasileiro, temos um presidente que se alinha com os negacionistas da ciência, e, portanto, nega, omite e ou desdenha as principais fontes e informações científicas para lidar com a crise sanitária. Isso gera um efeito manada em uma parcela minoritária, mas importante, da sociedade, estimada hoje em cerca de 15% a 20% da população brasileira, os seguidores mais apegados ao credo presidencial. Embora esta parcela seja mais representativa em alguns municípios, está espalhada por todos eles.

No nível dos estados, há também reflexos da atitude do presidente, especialmente naqueles cujos governos foram eleitos na esteira do seu discurso e se mantêm fiéis à seita. Outros, adeptos à época das eleições, mas cuja resposta à pandemia foi mais cautelosa e prudente, conforme as orientações de órgãos especializados de saúde do país e do mundo, aproveitaram o momento para o rompimento com a orientação política do presidente. Estes se somaram àqueles governadores que sempre tiveram posições políticas contrárias ao governo federal e adotaram medidas de contenção da doença, com restrição de atividades em diversos níveis.

Na base da pirâmide federativa estão os municípios, cujos governantes (são 5.570 no país!) haviam sido eleitos antes da última campanha presidencial, mas já no auge da polarização política alavancada com o impeachment de 2016. Estes têm atuações distintas e de difícil previsão. Muitos estão alinhados ao presidente e outros são pressionados pelo poder econômico, adotando posições muitas vezes contrárias aos governos estaduais. Embora parte dos decretos e normativas municipais tomadas contrariamente às orientações dos respectivos Estados ou da União (aqui representada pelo Ministério da Saúde, quando o mesmo tinha algum traço de autonomia) tenha sido derrubada por ações judiciais, o simples relaxamento de medidas de fiscalização é suficiente para quebrar o efeito desejado das medidas de contenção tomadas em nível executivo superior. Fica claro que tal ambiente, sem uma liderança proativa (e republicana) da União, e com políticas, informações e ações dos três níveis federativos com sinais contrários entre si, colocam a população no limbo, sujeita a uma confusão de conceitos, práticas e até medicamentos e procedimentos médicos a serem seguidos no enfrentamento à doença.

Soma-se a isso o primeiro aspecto mencionado aqui: o da escada temporal da desigualdade. Quanto maior o lapso de tempo para que a doença atinja estágios de franca disseminação, em razão da bolha em que fica contida num primeiro momento, maior a angústia da população e maior o impacto das informações de sinais contrários oriundas dos diferentes níveis de governo. O resultado é trágico: justamente nestes momentos, a flexibilização de medidas de contenção tem sido adotada, o que tem gerado novas escaladas de casos, agora atingindo todas as faixas sociais, com repercussão nítida nos números de contaminados e óbitos. É o momento em que a doença, disseminada no extrato de menor renda e sem acesso a serviços privilegiados de saúde, provoca as maiores taxas de letalidade, com impactos sinérgicos em todos os níveis.

Não é preciso dizer que os países que melhor têm lidado com a COVID-19, com menores taxas relativas de mortalidade e letalidade, se ancoram, dentre outros aspectos, em orientações e informações alinhadas entre diferentes níveis de governo, a partir de uma condução republicana agregadora. Assim, independente de nosso porvir, parece premente a construção de uma política de informações críticas, lastreada por órgãos de Estado com capacidade analítica e por instituições públicas autônomas de pesquisa. Por outro lado, há que se investigar (e, eventualmente punir) o nível de responsabilidade de lideranças políticas na condução da crise sanitária, especialmente no que tange ao aumento de vítimas e danos evitáveis, em função da forma obtusa e indevida de comunicação adotada durante a pandemia.