A transposição do debate conceitual do entendimento da pobreza como uma condição que abarca dimensões múltiplas e superpostas para a formulação de ões políticas efetivas é urgente para tornar o combate à pobreza uma meta social prioritária.

As infindáveis discussões metodológicas sobre o que define ser ou não ser pobre em gabinetes refrigerados não deveriam se dar desconectadas das realidades e subjetividades daqueles que vivem de fato a situação de pobreza. É preciso ir a campo, praticar a escuta, tirar a “pobreza” da posição de objeto de estudo para a posição de sujeito das ações e decisões que, em última instância, impactam a vida cotidiana de um contingente de pessoas que, a depender da métrica adotada, pode variar de 4% a 30% da população brasileira, se considerarmos unicamente o critério da renda como definidor da pobreza.

Trata-se de um contingente que abrange múltiplos perfis, engendra distintas vulnerabilidades e que, por isso, demanda do poder público ações de suporte e superação das mais variadas ordens. Dada toda a complexidade da formação de nossa sociedade, das desigualdades estruturantes históricas que a moldaram e que ainda limitam vidas e oportunidades, não é mais possível aceitar a responsabilização individual pela condição da pobreza.

Isso posto, o artigo de hoje é uma defesa inconteste da institucionalidade desenvolvida coletivamente para as ações de Assistência Social no Brasil a partir da Constituição de 1988 e, em última instância, do papel dos profissionais que atuam nas pontas desse sistema, acompanhando e atendendo diretamente a população mais vulnerável, identificando carências, oferecendo suporte, avaliando caminhos e soluções.

Por esses dias ficamos sabendo, através de matéria do UOL que teve acesso a documentos internos do Ministério da Cidadania, que a nova investida do governo federal sobre direitos sociais é justamente na redução do papel dos municípios na prestação da assistência social de forma a reduzir o custo do Programa Bolsa Família.

Ainda segundo o UOL, o Ministério da Cidadania listou uma série de motivos para as mudanças propostas, entre eles, “mudar o paradigma de programas assistenciais para programas de aumento da renda”. Claro que tudo pode ser mais uma investida para avaliar repercussão de potenciais medidas e recuar, ou não. Essa tem sido uma estratégia recorrente que aumenta incertezas e o fluxo literalmente desgovernado de informações, tudo que não precisamos no momento.

De toda forma, é importante levantar as defesas sobre a importância do papel da assistente social nos municípios e do bom cadastramento e monitoramento das condições de vida da população se, de fato, objetivamos reduzir a pobreza nesse país.

No artigo “Pobreza e Transferências de Renda” aqui no blog, pude discutir como o combate à pobreza unicamente via transferência de renda é falacioso. Mais uma vez, a proposta que parece estar à mesa não só lança a estratégia do cobertor (cada vez mais) curto para tirar dos pobres para atender aos pobres, como demonstra completo desconhecimento do que é criar soluções efetivas para superação da pobreza.

A assistência social é um direito social garantido constitucionalmente “a quem dela necessitar” (Artigo 203) e forma, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, o tripé que sustenta a Seguridade Social Brasileira, nosso sistema de proteção social (Artigo 194).

O Sistema Único de Assistência Social – SUAS foi coletivamente debatido, construído e institucionalizado de forma similar ao já consagrado Sistema Único de Saúde SUS e, como tal, organiza os atendimentos em função de sua complexidade. O acolhimento e atendimento iniciais são feitos nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) por uma equipe multidisciplinar que identifica as vulnerabilidades, faz os encaminhamentos para serviços específicos de assistência como inscrição em programas de transferência de renda, abrigos, recebimento de cestas básicas e auxílios diversos, conselho tutelar, serviços de qualificação profissional, entre muitos outros, em uma rede de entidades de assistência social previamente cadastradas.

A integralidade da atenção dada a cada família é crucial na identificação e superação das vulnerabilidades e melhorias das condições de vida da população atendida. A proposta atual é substituir essa integralidade do atendimento local, realizado pelas secretarias municipais de assistência social, por um aplicativo. Assim como realizado durante a excepcionalidade da pandemia com o Auxílio Emergencial, as famílias mais pobres passariam a se inscrever no Cadastro Único do Governo Federal por meio de um aplicativo de celular.

Para além da problemática da substituição apontada, cabe ressaltar que o CadÚnico é alimentado, desde 2003, pelas equipes locais de assistência social a partir de um questionário complexo e abrangente com informações sobre características das famílias e domicílios (composição familiar, quem trabalha, quem estuda, idades, rendas individuais, recebimentos de outros benefícios, tipo de saneamento e material de construção das moradias, entre outros) que contém informações sigilosas de mais de 77 milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade social e pobreza.

O preenchimento correto dessas informações e sua atualização sistemática são fundamentais para o monitoramento das condições de vida da população mais vulnerável e adequados encaminhamentos aos programas e serviços sociais subjacentes. A população não tem qualquer obrigação de conhecer o vocabulário técnico dos termos, muitas vezes complexos, presentes nos formulários de preenchimento.

Os institutos de pesquisa gastam vultosos recursos financeiros e humanos no treinamento de seus entrevistadores justamente para obter a melhor qualidade e fidedignidade possíveis nos dados coletados. Portanto, a pretendida redução de custos pode ser revertida na significativa piora das informações que vão, justamente, nortear a alocação de recursos nos programas sociais que restarem na terra brasilis arrasada.

Todos puderam acompanhar a quantidade de benefícios “em análise” durante a pandemia, fruto, principalmente, das dificuldades de cadastramento feito diretamente pela população no aplicativo desenvolvido especificamente para esse fim e sem qualquer intermediação profissional especializada.

Ademais, tal medida pode acabar por excluir justamente aqueles que mais necessitam da assistência social. Os últimos dados da PNAD Contínua sobre a Educação Brasileira em 2019 revelam que ainda temos cerca de 7% de população de 15 anos ou mais de idade analfabeta. Esmiuçando os dados, temos 27% da população preta ou parda de 60 anos ou mais de idade analfabeta e entre as pessoas de 25 anos ou mais de idade que sabem ler ou escrever, 6,4% não tem instrução e 1/3 não completou o ensino fundamental ou equivalente.

Lembramos que a exclusão digital se dá tanto por meio da falta de habilidades para acessar e usar tecnologias cotidianas diversas, como pela inviabilidade financeira de adquiri-las. A imposição do ensino remoto pela pandemia nos mostrou o fosso de desigualdades que se abre quando isso é levado em consideração, com alunos de escolas privadas terminando o ano letivo de forma remota em seus computadores e smartphones e alunos de escolas públicas sem acesso a telefones ou serviços de internet para acompanhar minimamente as aulas quando estas puderam ser realizadas.

Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma, ressalta, em artigo recente na Folha, que esse esvaziamento do papel da assistência social já vinha sendo articulado ao longo de 2020 com o corte de 67% dos recursos destinados ao SUAS, a desidratação dos valores repassados aos estados e municípios para gestão das informações do cadastro e toda a estruturação do Auxílio Emergencial via aplicativo específico, à margem do que já existia para o CadÚnico e o Bolsa Família.

É um completo equívoco o entendimento do CadÚnico como uma mera plataforma de dados e não uma tecnologia social capitaneada pelo olhar atento, humanizado e acolhedor da assistência social. Ainda segundo ela, “o conceito que organizou o Cadastro nestes 17 anos foi o de conhecer para incluir”.

Em um governo que pouco preza pela ciência e o conhecimento, era realmente questão de tempo a metralhadora giratória do desmonte de direitos e conquistas sociais chegar à sua porta de entrada. Substituir o papel da assistência local por um aplicativo é mais um capítulo dessa novela de enredo ruim em que nos metemos desde 2016, na qual prevalece o desprezo pelas vidas, desamor ao próximo e desrespeito à premissa básica de responsabilização coletiva pelo bem-estar de todos. Mais uma oferenda ao Deus Mercado do Vale do Silício, filial tupiniquim.

Ao que tudo indica, saímos da discussão cansativa de “dar o peixe ou ensinar a pescar” para a surrealidade de “nem um nem outro, toma um trocado e pede no Ifood”.

Referências:

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Veja outros artigos da autora em https://terapiapolitica.com.br/author/barbara-cobo/