Políticas habitacionais e o urbanismo: novos desafios, novos temas, novas abordagens
Após decisão do conselho curador do FGTS, a área de Habitação terá o maior orçamento dos últimos sete anos e irá contar com R$ 96,96 bilhões para 2023, sendo que esse valor será usado para turbinar o Minha Casa, Minha Vida. É, portanto, o momento de avançar em novas maneiras de pensar e implementar os projetos e programas habitacionais, que não foquem apenas na habitação/moradia, mas que incorporem abordagens urbanísticas mais acuradas e compatíveis com os desafios dos temas que a sociedade brasileira e global vem destacando em suas agendas.
As experiências pioneiras em urbanização de favelas no Brasil foram implementadas no início da década de 1980, sob a liderança de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, arquiteto, urbanista e antropólogo, então chefe do Centro de Pesquisas Urbanas – CPU do Instituto Brasileiro de Administração Municipal. A experiência do projeto de urbanização de Braz de Pina ganhou relevância e destaque, tornando-se importante referência em contraponto às políticas de remoção de favelas, preconizadas à época por Sandra Cavalcanti e principal linha de ação do extinto BNH na cidade do Rio de Janeiro.
No mesmo período, desenvolveu-se a implantação dos projetos de urbanização das favelas de Ilha das Cobras e Mangueira, em Paraty-RJ, que ocupavam áreas de baixios e manguezais do fundo da Baía da Ilha Grande, com habitações precárias, de palafitas, sobre terreno permanentemente alagadiço. Além da urbanização e implantação de infraestrutura de saneamento, um foco importante se iniciou na direção da regularização fundiária, garantindo o direito de acesso dos moradores aos títulos de propriedade ou de ocupação.
Desde então muito se avançou conceitualmente e, inversamente, pouquíssimo se avançou na resolução do déficit habitacional brasileiro, especialmente para as populações de baixa renda. O que veio sendo realizado não acompanhou o crescimento exponencial das populações de baixa renda e suas demandas por moradia. Em paralelo aos tempos de redemocratização do país, após a ditadura militar, as políticas de remoção forçada da população foram totalmente rechaçadas; por outro lado, seguiram mantidos os projetos focados em conjuntos habitacionais financiados pelo BNH e depois pela CAIXA, ainda herdeiros do urbanismo funcionalista que se mirava no padrão de Brasília, em áreas das periferias urbanas e metropolitanas. Programas e projetos de urbanização de favelas e de loteamentos informais se multiplicaram, entretanto sempre aquém das demandas e necessidades, não apenas das unidades habitacionais, mas também da infraestrutura e saneamento necessários.
Não tenho aqui a pretensão de analisar e avaliar as políticas e programas habitacionais nesse largo período, mas apenas apontar os desafios atuais e renovados para a implementação das novas políticas e programas.
O programa Minha Casa Minha Vida – MCMV foi criado em 2009, extinto em 2020 e substituído pelo Casa Verde e Amarela no governo Jair Bolsonaro. A 1ª fase do programa teve méritos quantitativos, porém recebeu fortes críticas quanto à localização dos conjuntos habitacionais em periferias urbanas e metropolitanas distantes, da mesma forma que programas anteriores, exigindo custos expressivos para implantação de infraestrutura e equipamentos urbanos, assim como o ônus do deslocamento/tempo dos moradores para o trabalho. Nesse formato, muitas vezes desrespeitava os Planos Diretores municipais, criando novos vetores de expansão urbana e trabalhando na contramão de boas estratégias de mobilidade urbana. Outros aspectos, como a qualidade das edificações, conflitos e abandono, domínio do tráfego com expulsão de mutuários em algumas áreas metropolitanas indicou claramente que se tratava de uma política governamental que necessitava de aprimoramentos.
No início de 2023, já no governo Lula, o Minha Casa Minha Vida foi retomado com novos critérios. O programa agora revitalizado atenderá famílias com renda mensal de até R$ 8 mil, em áreas urbanas, e de até R$ 96 mil ao ano, na zona rural. Pelo menos 5% dos recursos do programa deverão ser aplicados no financiamento para a retomada de obras paradas, na reforma ou requalificação de imóveis inutilizados e na construção de habitações em cidades de até 50 mil habitantes.
Outra mudança é o desconto de 50% na conta de energia de quem for inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). A lei acaba com a exclusividade da Caixa Econômica Federal como operadora Minha Casa Minha Vida. Com a mudança, bancos privados, digitais e cooperativas de crédito poderão operar no programa, desde que forneçam informações sobre as transferências ao Ministério das Cidades, com identificação do destinatário do crédito, e comprovem que têm pessoal técnico especializado, próprio ou terceirizado, nas áreas de engenharia civil, arquitetura, economia, administração, ciências sociais, serviço social e direito.
Além das citadas acima, foi incluída nessa nova versão a permissão do uso de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para projetos de iluminação pública, saneamento básico, vias públicas e drenagem de águas pluviais. Desta forma, os aspectos essenciais da infraestrutura urbana e do saneamento básico passam a fazer parte da política habitacional.
Mais do que isso, reforça-se a relevância de inserir os projetos de habitação no tecido urbano já consolidado, associados a planos diretores municipais e/ou aos projetos de revitalização de áreas centrais das metrópoles e cidades médias, que sofreram processo de esvaziamento crescente, agravado pelos tempos de pandemia e novas formas de trabalho remoto ou misto. Evita-se assim gerar novos vetores de expansão urbana e articula-se aos sistemas de mobilidade urbana incorporando os conceitos de adensamento próximo às estações de metrô ou artérias com sistemas de transporte coletivo; proximidade entre as funções de moradia, comércio, serviços e trabalho, reduzindo movimento pendular e o transporte individual, maximizando o uso de bicicletas e caminhadas a pé.
Abrem-se novas possibilidades de projetos de recuperação de prédios invadidos ou abandonados nas áreas centrais das cidades, como já experimentadas pela prefeitura de São Paulo, com recuperação de conjuntos; retrofit em áreas já abastecidas de infraestrutura urbana e acesso à cidade – trabalho, renda, uso de equipamentos urbanos e serviços. As novas possibilidades de projetos inseridos no tecido urbano já consolidado permitem a convivência de vários estratos sociais no espaço urbano, democratizando as trocas e atividades econômicas, culturais e de serviços públicos, mas principalmente, maximizam soluções de mobilidade, reduzindo as necessidades de deslocamento. Outros aspectos, como as questões de gênero e acessibilidade, podem dar conta da diversidade do perfil de moradores e reforçar características para unidades com necessidades específicas de projeto.
Importante destacar a promulgação da lei federal 11.888/2008 que criou a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social – ATHIS. Esta buscou assegurar que famílias com renda de até três salários mínimos recebam assistência técnica pública e gratuita para a elaboração de projetos, acompanhamento e execução de obras necessárias para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária de suas moradias. Reforça o direito social à moradia, valorizando bairros declarados como espaços de interesse social. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo CAU/BR criou o Portal Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, que reúne informações sobre direito à moradia digna, exemplos desenvolvidos pelos CAU/UF e Mapa da Assistência, com Prefeituras que possuem Lei de ATHIS regulamentada. As experiências se multiplicaram, porém ainda são bastante limitadas e não suficientemente disseminadas.
Um novo programa está sendo desenhado pelo Ministério da Gestão – Democratização dos Imóveis da União -, prevendo repassar ativos federais, como prédios, terrenos e galpões, a maior parte deles abandonada ou ocupada por movimentos sociais, para serem destinadas a moradias populares, equipamentos de saúde pública, educação, atividades esportivas e culturais.
Para além desses avanços, ampliam-se os debates e iniciam-se a proposição de projetos e programas que também incorporem os aspectos de consumo e cogeração de energia elétrica; processos construtivos e contribuição para redução de Gases de Efeito Estufa – GEE, apontando-se para as metas de carbono zero e os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, reafirmados pelo governo atual.
Assim, no tema de mudanças climáticas, os projetos de habitação e urbanismo devem se pautar pelas vertentes da mitigação e da adaptação.
O uso de painéis solares, sejam individuais ou coletivos, permitem não apenas reduzir o consumo e as contas de energia elétrica para mutuários, facilitando sua capacidade de pagamento dos financiamentos, como também obter um excedente que poderá ser devolvido à rede elétrica, gerando recursos ou garantindo redução das contas dos próprios municipais.
A diversificação dos projetos, com melhor adaptação aos diferentes climas e utilização de materiais locais que evitem transporte a longas distâncias, bem como a redução do desperdício podem reduzir custos e disposição final de resíduos, também colaborando na direção da redução de emissões.
Pelo lado da adaptação às mudanças climáticas, os programas e projetos deverão garantir soluções de arquitetura, urbanismo e infraestrutura que considerem as potencialidades de eventos extremos. Aspectos de drenagem, que historicamente foram relegados a segundo plano, caminham agora cada vez mais para a busca de Soluções Baseadas na Natureza – SBN, respeitando os cursos d’água com o mínimo de impermeabilização do solo e ampliando áreas verdes e paisagismo das margens, a serem utilizadas normalmente como parques urbanos, ciclovias, atividades de lazer e esporte e que poderão, na situações extremas, receber maior quantidade de água pluvial.
Com a conjunção de fatores positivos em termos de recursos e formas de financiamento para habitação de interesse social, associados a políticas públicas relevantes nos campos da saúde pública, do meio ambiente, do saneamento e dos direitos humanos em geral, abre-se neste momento, um amplo espaço para a criação de programas e projetos inovadores em habitação e urbanismo; na concepção; na forma; nos processos de elaboração e implementação; na sua inserção e integração aos tecidos urbanos; no uso de materiais e tecnologias; na geração de empregos e, principalmente, na redução do déficit habitacional, com qualidade da moradia e direito à cidade. Arquitetos, urbanistas, gestores públicos locais e regionais, empresas de construção civil deverão rapidamente focar e ampliar essas abordagens, multiplicando experiências inovadoras e evitando repetir os erros do passado. (O texto transcreve parte de um depoimento dado à Revista de Administração Municipal, do IBAM, que será publicado em número especial, em set/2023)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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