As elites francesas sempre se preocuparam em formar lideranças e técnicos para dirigir o Estado. As brasileiras, ao contrário, sempre viram o Estado como uma de suas propriedades por direito natural, então supõem surgirem espontaneamente quadros para lhes servir nos diferentes contextos históricos. Quando a coisa desanda, e lhes faltam lideranças capazes de fazer o que precisa ser feito, sonham com soluções miraculosas. Não querem Lula, então apelam para que os céus lhes deem uma candidatura sensata, capaz de representar o médio, o bom senso e o equilíbrio. Na busca por alguém com grife, vale quase tudo, até a sugestão burilada pela colunista Eliane Cantanhede:

“O presidente Jair Bolsonaro está esfarelando e, se a eleição fosse hoje, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estaria eleito no primeiro turno, segundo o Datafolha. Lula, portanto, já é o grande vitorioso” (…) É hora de reagir à ameaça de golpe com um golpe de mestre espetacular, de enorme grandeza, abrindo mão da cabeça de chapa e assumindo a vaga de vice numa chapa de união e pacificação nacional. Um gesto para a história à altura da sua biografia e do grande líder que ele é.(…) Lula terá 77 anos em 2022 e 81 em 2026. Nada mal. Ele, porém, teve uma vida difícil e tem sérios problemas de saúde, além de… viver um novo amor. O que ganharia assumindo a rotina de presidente, com críticas, pedradas, cargos, reuniões e chateações? Não lhe convém mais o papel de garantidor, de avalista para o mundo de que o Brasil está nos eixos da democracia, busca estabilidade e quer avançar, não retroceder?”

Falando de grife, nosso assunto é contar um pouco da construção do centro na França.

O grife francesa

Com apenas 41 anos, Emmanuel Macron se tornou em 2017, o mais jovem presidente francês. Um político de bela estampa que gosta de se autoproclamar moderno, pertencente a uma nova estirpe. Provavelmente investido de uma procedência mágica e destinado com toda certeza a um eventual futuro mais que perfeito, flutuando confortavelmente sobre as classes sociais como um Papai Noel esbelto e hollywoodiano.

Era o ator ideal para representar o papel: homem na flor da idade, de expressão encantadora, com formação acadêmica de primeira linhagem e experiência profissional no topo da cadeia alimentar, extraordinariamente bem sucedido tanto na iniciativa privada quanto na curta carreira como funcionário do Estado, um casamento estável com uma bela mulher 25 anos mais madura. Consistência e vigor. Juventude e maturidade. Quase um galã.

Poderia vender o que bem entendesse a uma fatia ampla do eleitorado de qualquer dos principais países europeus por um largo período. O papel a que se propôs já tinha sido representado antes e tem sido um dos favoritos dos atores políticos contemporâneos que desejam encurtar o caminho para o poder: o de outsider que concorre como alternativa de renovação dos partidos tradicionais. Um produto que desde sempre esteve na prateleira dos clássicos, mas sempre vendável como se tivesse sido inventado ontem.

Ninguém entre os eleitores que aderem a esse tipo de embuste se pergunta o que são esses partidos tradicionais e, em contraposição, o que seriam esses políticos não tradicionais que se apresentam como novidade. A esse eleitorado basta-lhe o rótulo. A cretinice política (que repete os maus hábitos da estupidez consumista) está tão difundida entre boa parte dos que votam que é suficiente que se diga novo e assim estará. Basta-lhe a contraposição ou a antinomia aparente. E políticos bem dotados como Emmanuel Macron, formado nas qualificadíssimas escolas de administração preparatórias das elites mundo afora, não carecem de muito tempo para que sejam capazes de ler a bem disposta psique binária desse eleitorado e manipulá-lo à vontade. O passo seguinte é atender prontamente aos interesses daquela outra gente com quem efetivamente tem laços e compromissos.

É como se fosse um jogo de imagens do qual deverá sair vitorioso o melhor vendedor ou o melhor publicitário ou o portador da melhor fotogenia à qual tratará de acoplar uma certa mensagem. Então, há que se criar essa mensagem portadora de encantos.

Quais as promessas daquele que se apresenta como alternativa nova ao antigo?

As de fundo todos conhecem de cor e salteado e sequer o próprio mensageiro as nega, embora não lhes dê destaque ou prefira deixá-las debaixo do pano: reduzir o tamanho do Estado, liberalizar, desregulamentar, reformar o sistema trabalhista para cortar direitos insustentáveis, “simplificação e diminuição das taxas sobre o ingresso de capitais, baixar… os impostos corporativos” ou, como disse um comentarista da política francesa, aplicar todas “as políticas econômicas que temos aplicado nos últimos 20 anos”. Vigoroso ultra liberalismo empacotado em celofane recém prensado. A isso se dá agora o nome de centro político.

A jovialidade e a energia acompanham a carta de apresentação da marca Emmanuel Macron: “nova, moderna, jovem, fresca e inovadora”. Uma lista de registros cuidadosamente construída após longas sessões de pesquisas conduzidas por especialistas com populações de eleitores/consumidores em salas de laboratório. Muita técnica de venda e convencimento constantemente atualizada.

Outro atento observador da cena francesa dizia ser “difícil enquadrar Macron fora do establishment político e econômico francês”. Difícil, isso era, mas a crendice e a estupidez cuidadosamente cultivada na horta da pós modernidade não é menor que no mais bravio medievo. Ao intrépido e mui pragmático filho da elite francesa cabia ler bem as planilhas e realizar com talento os cálculos que tinha aperfeiçoado na escola. Depois, era só apostar alto para ganhar as eleições e se tornar presidente.

Eleito presidente, aquele que se anunciava tão novo e independente do establishment que para atuar necessitava criar um novo partido, ditou entre suas primeiras medidas a redução do imposto sobre a riqueza. Essa medida permitiu uma poupança extra de aproximadamente dez mil euros por mês para os 330 mil contribuintes mais ricos do país, algo como 0,49% dos franceses. Talvez não seja coincidência que o ano de 2018 tenha chegado ao final com uma alta de 1,6% do poder aquisitivo dos 5% mais ricos da população, e uma leve contração nos ingressos dos 5% mais pobres.

Segundo ato

Menos de dois anos após o levantamento dos jalecos amarelos, Macron enfrentou uma segunda onda nacional de revolta. Os novos protestos surgiram no final do outono de 2020, após a aprovação pelo parlamento da Lei de Segurança Global na qual se destacava um artigo proibindo a gravação e difusão de imagens dos agentes das forças de segurança no ato de cometimento de práticas ilegais de constrangimento ou violência indevida. Quase simultaneamente à tramitação da lei, uma sucessão de casos de violência policial veio à tona graças precisamente à gravação e divulgação de imagens de violência policial – voltada quase que invariavelmente contra negros e imigrantes. A divulgação dessas imagens, mas sobretudo a persistência e o crescimento das manifestações, levaram alguma dose de juízo ao presidente que, pelo menos naquele momento, foi obrigado a recuar. A nova Lei é de fato o fortalecimento do Estado Policial na França, e assim o percebem aqueles que a ela resistem.

( Trecho do livro A Noite Belga, recentemente publicado pelo autor. Clique aqui para ler uma resenha da obra. )

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