A esquerda, as políticas sociais pobres para os pobres e o federalismo

O presente texto examina um dos temas mais importantes das opções equivocadas da fração majoritária da Esquerda brasileira: sua “luta” platônica contra as “políticas sociais pobres para os pobres”. Essa fração majoritária da Esquerda é aquela que renunciou à sua alma vermelha e, travestida com o neoliberalismo progressista, ressurgiu como uma “Esquerda de Alma Branca”, na verdade, uma alma neoliberal progressista.

Por que “luta” platônica? Porque, como veremos em detalhes num próximo artigo, trata-se de uma luta “de caráter espiritual, sem desejo sexual”, ou seja, sem tesão, sem objetivo claro (Dicionário Priberam). Ou, como sintetizou um amigo, “muita tese, pouco tesão”.

Na origem desta “luta” platônica estão os caminhos neoliberais progressistas da Esquerda majoritária, em conjunto com suas opções por atalhos, parcerias e alianças político-ideológicas com os “ovos da serpente” (Mensalão, Petrolão, Temer escolhido por Lula para vice de Dilma etc), que resultaram numa dinâmica que abriu espaço para os piores inimigos históricos da Esquerda e do povo, e assim levaram às “Jornadas de junho de 2013”, ao impedimento de Dilma Rousseff, e aos votos de 57,7 milhões de eleitores em Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018.

No centro e em consequência desta dinâmica, está a decadência e privatização das políticas sociais públicas, que sempre foram “políticas sociais pobres para os pobres”, processo este agravado, por incrível que pareça, nas gestões federais daquele segmento da Esquerda.

Aqui tratamos, sem muitos cuidados teórico-conceituais e com destaque para a Saúde e a Educação Básica públicas, das políticas sociais que deveriam garantir a todos, com qualidade:

  • (I) o direito à moradia digna;
  • (II) infraestrutura pública de saneamento;
  • (III) educação pública, de preferência em tempo integral;
  • (IV) saúde pública integral; (V) transporte público, gratuito ou a preços acessíveis;
  • (VI) segurança pública com respeito aos direitos humanos.

Ao contrário do que se imaginava com o fim da ditadura civil-militar, no pós Constituição Federal de 1988 (CF/88) aprofundou-se entre nós uma cruel realidade: a gravíssima situação bipolar de exclusão social que é hegemônica na sociedade brasileira, na qual as políticas sociais públicas se tornaram “políticas sociais pobres para os pobres”, totalmente decadentes e profundamente privatizadas sob diversas formas, afastando-se completamente de seus objetivos iniciais de universalidade e qualidade, caso de todas aquelas e, em particular, da Saúde e Educação Básica públicas. Ou, pior ainda, no caso da Segurança Pública, essa se tornou uma “política social pobre contra os pobres”.

Estas “políticas sociais pobres para os pobres” se destinam a cerca de 170 milhões de cidadãos que delas dependem exclusivamente. Este contingente inclui também os de baixa renda que possuem planos de saúde privados e frequentam escolas particulares ambos de baixa ou baixíssima qualidade. O que, na prática, os torna quase sempre dependentes das “políticas sociais pobres para os pobres”.

Por outro lado, os demais 40 milhões de cidadãos, dos quais fazem parte a Esquerda majoritária e este escriba, “não dependem” dessas “políticas sociais pobres para os pobres”, pois possuem renda suficiente para se proteger por meio de planos e seguros privados de saúde, da medicina privada e do uso de escolas privadas, ou pertencem a categorias de trabalhadores com capacidade para exigir de suas empresas, públicas ou privadas, planos privados de saúde e acesso a escolas privadas como parte dos benefícios indiretos.

Em ambos os casos, os planos e seguros privados de saúde, a medicina privada e as escolas privadas utilizadas por essa elite são pagas com fundos públicos, seja diretamente, como em certas categorias de servidores públicos, seja indiretamente por meio do subsídio integral dessas despesas via abatimentos no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas.

Ou seja, essa elite, que inclui o segmento majoritário da Esquerda, é subsidiada em boa parte com os impostos daqueles 170 milhões que dependem exclusivamente das “políticas sociais pobres para os pobres”.

Por isso, as políticas sociais públicas constituem um dos temas centrais para a reinvenção da Esquerda brasileira, como indicado no artigo inicial desta série.

Entretanto, após os tsunamis neoliberal e bolsonarista, este debate, sem que se tenha clareza de para onde queremos caminhar na necessária “reordenação estratégica do Estado” (FALEIROS, 2004), pode ser mais uma perigosa armadilha para os que lutam pela reconstrução da Esquerda.

Assim, é importante afirmar que essa reinvenção da Esquerda deve partir da construção de um novo projeto para um Brasil efetivamente e radicalmente igualitário, solidário e democrático, onde a construção de um efetivo Estado do Bem-Estar Social (EBES), para todos, seja o denominador comum de todas as políticas públicas, sociais ou não, de um Estado democrático forte e atuante.

É bom frisar, para que a nova Esquerda não repita os “erros” da fração hegemônica da Esquerda brasileira, que se trata de um Estado do Bem-Estar Social (EBES) efetivamente para todos, com políticas sociais públicas efetivamente universais, integrais, equânimes e de qualidade, também efetivamente para todos.

A repetição do termo “efetivamente” e da expressão “efetivamente para todos” parece uma redundância desnecessária, inclusive com o termo “universais”. Entretanto, em nosso contexto político-social, trata-se apenas de enfatizar o significado profundo desses termos, pois aqui, embora qualificadas de diversos modos como “universais” e “integrais” na Constituição Federal, as políticas sociais públicas sempre foram “políticas sociais pobres para os pobres”, a exemplo de Saúde e Educação Básica, profundamente decadentes e privatizadas.

Sobre a centralidade das Políticas Sociais para a reinvenção da Esquerda brasileira, vale citarmos Castel (1998) apud Vianna (2011), segundo o qual a “questão social é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura”.

Por isso, na reconstrução da Esquerda, necessariamente com base em um novo projeto de sociedade efetivamente democrática, inclusiva e igualitária, que tenha como eixo central um EBES para todos, o correto enfrentamento da questão social será uma questão decisiva, uma aporia fundamental sobre a qual a Esquerda brasileira vai enfrentar o enigma de sua reinvenção e tentar conjurar o risco de sua extinção definitiva. É por esta razão que, na luta por sua reinvenção e sobrevivência, o correto enfrentamento da questão social por meio de um EBES com Políticas Sociais de qualidade, efetivas e para todos, será o item mais importante de seu novo projeto para a sociedade brasileira.

Na contramão deste requisito inarredável, no pós-ditadura, o grande “erro” do segmento hegemônico da Esquerda, travestido com o neoliberalismo progressista, foi permitir que as políticas sociais se transformassem em “políticas sociais pobres para os pobres”, a exemplo da Saúde e da Educação Básica públicas.

É ainda Vianna (2011) que nos alerta sobre uma certa concepção político-ideológica quanto à questão social que, a nosso ver, orientou aquele segmento majoritário da Esquerda em seus tortuosos caminhos: “Do entendimento reducionista de que a questão social é a pobreza (uma potente premissa teórica) decorre a acepção de que a política social tem por função proteger os pobres, o que está longe de alinhar em concordância os cientistas sociais”.

Foi exatamente este entendimento reducionista da questão social pela fração hegemônica da Esquerda brasileira, que a fez privilegiar o Bolsa Família, PROUNI, FIES e outros que tais, omitindo-se de enfrentar, efetivamente, a razão principal da contínua decadência e privatização das políticas sociais públicas, em particular Saúde e Educação Básica. No modelo vigente de organização dessas políticas sociais públicas, cada um dos 5.598 entes federados ─ União, 26 Estados, 1 DF e 5.570 Municípios ─, devido à sua autonomia político-administrativa no interior da organização e construção dessas políticas, é “dono” de “sua” Saúde e de “sua” Educação Básica públicas, apesar de todos os esforços para nacionalizar e qualificar o desenvolvimento e a gestão dessas políticas.

Por essa razão, o SUS nunca foi um Sistema Único de Saúde, e sim a “colagem” de 5.598 “Sistemas Únicos de Saúde”. E a Educação Básica pública, mais ainda, é uma imensa colcha de 5.598 retalhos.

Sobre a extrema diversidade e complexidade dos ambientes da Saúde e da Educação Básica públicas, considerando apenas sua organização sobre a autonomia político-administrativa de 5.570 municípios, diversos autores já se manifestaram, por exemplo em (GRIN; DEMARCO; ABRUCIO, 2021). Como consequência direta, temos a imensa complexidade e a inviabilidade de governança e gestão dessas políticas sociais.

Já em 2017, um importante combatente da Reforma Sanitária Brasileira e experiente gestor público da Saúde, Gastão Wagner de Souza Campos, agravou ainda mais sua antiga crítica radical a essa razão central de o SUS Constitucional ter se tornado o “SUS pobre para os pobres” (CAMPOS, 2017): “O SUS está sendo estraçalhado entre serviços públicos, organizações sociais, fundações, entidades filantrópicas, uma Babel em que não há solução gerencial mágica. O SUS sofre com as mesmas mazelas do Estado brasileiro: ineficiência, privatização de interesses, clientelismo, burocratização. Precisamos, urgente, de uma reforma do modelo de gestão que diminua o poder discricionário do poder executivo e que assegure sustentabilidade e continuidade ao SUS”.

O SUS, Sistema Único de Saúde, é um dos maiores e mais importantes sistemas públicos de saúde, do qual dependem diretamente cerca de 170 milhões de brasileiros. Se isso não é motivo suficiente para que uma nova Esquerda trave a luta efetiva por um novo modelo de organização e gestão do SUS, melhor que a Esquerda morra de vez.

Na Educação Básica pública, cujo modelo de organização e gestão é, grosso modo, similar ao da Atenção Básica do SUS, especialistas na área apontam a extrema complexidade deste modelo, que, do mesmo modo, tem como consequência a inviabilidade de sua gestão, sua privatização e decadência.

A verdade é que este modelo de organização das políticas sociais públicas, sobre nosso federalismo municipalista alucinado, tem sido uma porta aberta para os piores interesses político-partidários e eleitorais, e fonte principal da decadência e privatização dessas políticas.

A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – 9.394/96), a Educação Básica passou a ser estruturada por etapas e modalidades de ensino, englobando a Educação Infantil, o Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental são de responsabilidade principal dos Municípios, e o Ensino Médio de responsabilidade principal dos Estados, havendo, em ambos os casos, superposição de responsabilidades.

Grosso modo, também como no SUS, aqui a União Federal tem funções de coordenação do Sistema da Educação Básica em conjunto com Estados e Municípios, o que envolve normatização e financiamento complementar.

Por isso, na Educação Básica pública, coerentemente, as consequências e os gravíssimos problemas de seu modelo de organização são similares aos do SUS: “O que todos esquecem é que o problema essencial da educação básica brasileira começa com o dualismo educacional: a coexistência de uma rede privada, com ampla liberdade organizacional, alimentada com dinheiro público e destinada às classes média e alta, e de uma rede pública, responsável por cuidar da educação, alimentação, transporte e segurança da maioria pobre brasileira, porém travada e desabastecida” (VARGAS; CRUZ, 2018).

Sobre “uma rede privada, com ampla liberdade organizacional, alimentada com dinheiro público e destinada às classes média e alta”, ver o amplo subsídio público a essas classes média e alta aqui apontado anteriormente, também em “Lemann aumenta aposta em educação e grupo Eleva se torna um dos maiores do mundo em ensino básico” (GUIMARÃES, 2021), e “Ensino superior caminha para a formação de oligopólios” (GOIS, 2021).

Ao não enfrentar o atual modelo federalista e municipalista de organização dessas políticas sociais públicas, optando por uma “luta” platônica por políticas sociais universais e equânimes, a fração majoritária da Esquerda brasileira permitiu que estas se tornassem “políticas sociais pobres para os pobres”, completamente decadentes e privatizadas, aprofundando assim nosso intransponível abismo social.

Aqui é importante responder a uma pergunta que muitos farão: e o Bolsa Família? E a criação, pelos governos federais do Partido dos Trabalhadores, de 18 novas universidades federais e 178 novos câmpus, além de 422 novas escolas técnicas, parte de uma rede estruturada em torno dos Institutos Federais de Ensino Tecnológico, que chegou a 596 municípios? Tudo isto não serviu para nada?

Por certo que foi, em larga medida, importantíssimo, frente ao nosso abismo social. Mas a pergunta é outra: e o Bolsa Família frente ao Bolsa Empresário? E os bilhões de reais investidos no PROUNI e FIES, será que não seriam melhor aplicados para ampliar ainda mais aquela expansão do ensino superior público e dos institutos federais de ensino técnico? E as consequências desses bilhões de reais que financiaram a oligopolização e internacionalização do ensino superior privado, com seus impactos políticos? E as consequências como o endividamento impagável daqueles usuários do PROUNI e FIES, devido à política monetária neoliberal do Banco Central? E o ensino de péssima qualidade nesses conglomerados privados, com a panaceia do Ensino à Distância?

Essas e outras são as consequências da práxis daquela “Esquerda de Alma Branca”: uma no cravo e outra na ferradura, ou melhor, uma no cravo neoliberal e outra na ferradura do Bolsa Família, da Educação Básica e da Saúde públicas “pobres para os pobres”, sabendo-se que é o cravo que mantém travada a ferradura. Será mera coincidência que Vargas e Cruz, logo acima, tenham atribuído as mazelas da Educação Básica pública à dualidade público-privado, devido à existência de uma “rede privada … alimentada com dinheiro público e destinada às classes média e alta” (o cravo) e uma rede pública “travada e desabastecida” (a ferradura)?

Por tudo isto, se queremos evitar os “erros” da fração dominante da Esquerda brasileira na luta por políticas sociais públicas efetivamente universais, integrais, equânimes, de qualidade e para todos, é condição sine qua non atuarmos como proposto por Safatle (2020) para superarmos a agonia e morte da Esquerda brasileira: “encarar as derrotas quando elas ocorrem… ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão”. É o que se busca fazer nesta série de artigos “Por que a Esquerda brasileira morreu”.

Por ora, apenas para que se reafirme a importância desses temas para a reconstrução da Esquerda e da luta social, basta registrar o caos que é a gestão dessas políticas públicas no atual modelo de sua organização, em que União, Estados e Municípios são “donos” de “sua” Saúde, de “sua” Educação Básica e demais políticas sociais públicas mencionadas. Aqui podemos citar, entre muitos exemplos:

  • (I) Na Educação pública, o recente aumento de 33,24% do piso salarial nacional dos professores da Educação Básica, promovido pelo Governo Federal com nítidos propósitos eleitorais à revelia de Estados e Municípios, que deverão arcar com a maior parte deste reajuste, e a chuva de protestos desses entes federados.
  • (II) Na Saúde pública, o pandemônio político na gestão e execução do combate à pandemia de Covid-19, com o permanente atrito do governo Bolsonaro com estados e municípios, em particular com o estado de São Paulo, e a resistência e fraudes do Governo Federal na compra de vacinas e na implantação e promoção do Programa Nacional de Imunização, com gravíssimos prejuízos para a saúde dos brasileiros como demonstrou a CPI da Covid.

Referências:

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Maria Eduarda M. E Souza

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