As manifestações alusivas ao 1º de Maio simplesmente não ocorreram em várias capitais de estados. Nem mesmo o evento programado para o Arena do Corinthians, em Itaquera, na capital paulista, que contou com a presença do presidente da República e vários ministros de Estado, conseguiu atrair a presença dos trabalhadores, apesar dos esforços em transformá-lo em um megaevento, no qual o governo mostraria sua força política e renovaria seus compromissos com a classe trabalhadora.

Desde logo, uma pergunta se impõe: qual a razão desse esvaziamento, diante dos milhares de operários que lotavam estádios para ouvir Lula, o então líder sindical do ABC paulista?

Várias podem ser as razões que explicam essa mudança. A primeira, de natureza mais abrangente, encontra sua explicação na reestruturação do capitalismo, que não apenas soube adaptar-se às novas tecnologias por ele desenvolvidas, como impõe novas formas de relações de trabalho. Neste ponto, é fundamental recorrer ao sociólogo húngaro, naturalizado inglês, Zigmunt Bauman. Ao descrever a “modernidade líquida”, uma metáfora em clara alusão à famosa frase sobre “derreter os sólidos”, cunhada há quase 170 anos por Engels e Marx no seu Manifesto Comunista, Bauman lembra que a frase se referia ao tratamento que o autoconfiante espírito moderno dava à sociedade, que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar e amoldar-se às suas ambições – porque congelada em seus caminhos habituais. Esse “espírito” era “moderno” porque estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos, ou seja, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo.

Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado” – pelo repúdio e destronamento do passado e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o resíduo e sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação”.

Isso foi feito não para acabar de vez com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre, mas para limpar a área para novos e aperfeiçoados sólidos; para substituir o conjunto herdado de sólidos deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado e preferivelmente perfeito, e por isso não mais alterável. Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos e impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. A construção de uma nova ordem, verdadeiramente sólida, requeria primeiramente livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores.

“Derreter os sólidos”, naquele contexto, significava eliminar as obrigações que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; ou como diria Weber, libertar a empresa dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das obrigações éticas. Ou, como prefere Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”.

Essa forma de “derreter os sólidos” deixou toda a complexa rede de relações sociais no ar, nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir com eles.

Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação da racionalidade instrumental (em Weber), ou para o papel determinante da economia (em Marx). Agora a “base” da vida social outorgava a todos os outros domínios o estatuto da “superestrutura” – isto é, um artefato da base, cuja única função era auxiliar sua operação suave e contínua. O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais, sedimentando uma nova ordem, definida prioritariamente pelo econômico, que deveria ser mais “sólida” que as ordens que substituía, porque diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse econômica.

Adaptando essa visão ao caso brasileiro, “derreter os sólidos” significava eliminar a presença do Estado, afastar os instrumentos reguladores e normatizadores da atividade econômica, particularmente as relações de trabalho, abrindo caminho para o “novo”, ou seja, para o mercado totalmente desregulado. Assim, a reforma trabalhista instituída no governo Temer cumpriu o mesmo papel “moderno” denunciado há quase 170 anos por Engels e Marx.

A segunda explicação, diretamente derivada do processo de globalização vigente desde a década de 1980, diz respeito ao trabalho e ao emprego. Após 25 anos de alto crescimento sustentado e baixos índices de desemprego, a crise dos anos 1970, seguida das políticas deflacionistas e das mudanças tecnológicas, provocou, em quase todo o mundo, uma desaceleração do crescimento e uma  reestruturação produtiva que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, tanto no número de empregos, quanto na remuneração, na organização sindical e nos direitos trabalhistas. Em poucos anos, caiu vertiginosamente o número do operariado fabril clássico e cresceu o universo do trabalho precarizado, subcontratado, terceirizado, etc. Ao mesmo tempo, a participação salarial na renda nacional também caiu em quase todo o mundo e o desemprego estrutural global, somado ao trabalho precarizado, atingia, no fim do século XX, a casa de um bilhão de trabalhadores; ou um terço da população mundial economicamente ativa.

A terceira explicação, sem prejuízo de outras que certamente auxiliam na elucidação da situação aqui abordada, refere-se ao processo produtivo com base na Inteligência Artificial e nas plataformas digitais que absorvem milhões de trabalhadores, falsamente denominados “empreendedores”, que se relacionam com vários tomadores de sua mão de obra e, por esta razão, não se enquadram mais na antiga relação empregado/patrão, prevista na CLT e outros instrumentos legais, cuja manutenção atende mais aos interesses corporativos dos membros da Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e advogados trabalhistas, do que, efetivamente, a defesa desses milhões de desassistidos.

Diante dessa realidade, o sociólogo norte-americano Richard Sennet, afirma que o “capitalismo flexível”, uma das expressões identificadoras do processo de globalização, descreve hoje um sistema que não é nada mais que uma variação sobre um velho tema. Ao enfatizar a flexibilidade e atacar as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina cega, os difusores deste “novo” tempo, procuram construir a ideia de que esse novo mundo é melhor que o antigo, porquanto valoriza a iniciativa pessoal e o trabalhado empreendedor. O que os arautos desse novo/velho sistema não revelam, mas que se mostra posteriormente perverso, é que para ingressar nesse novo mundo o trabalhador paga um preço elevado, pois dele se exige disposição para assumir riscos de forma contínua, o que se constitui em fonte de ansiedade e tensão permanentes, pois ele não sabe, a priori, quais riscos serão compensados, ao mesmo tempo em que deve abrir mão da proteção da lei e de outros procedimentos formais. Essa flexibilidade dá às pessoas a falsa impressão de liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles em vez de abolir as regras do passado. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível.

No Brasil, os efeitos do processo de globalização sobre o trabalho e a renda do trabalhador não foram diferentes. Sob a justificativa de que era necessário reduzir o “custo Brasil” para poder competir em nível mundial, pregou-se a flexibilização da legislação trabalhista e a eliminação dos institutos normatizadores da atividade laboral e produtiva, deixando ao livre arbítrio do mercado a solução de eventuais conflitos. De certo modo, os governos da década de 1990 deixaram-se conduzir por essa cantilena, introduzindo novas formas de contratação, substituindo direitos consagrados na própria Constituição Federal, como o da remuneração da jornada extraordinária de trabalho, por um “banco de horas”, entre outras medidas.

Ademais, em sua dimensão política, o processo de globalização acarretou efeitos diretos na redução do poder de intervenção até então exercido pelo Estado-nação. O triunfo do capitalismo como regime praticamente hegemônico, tornou o Estado-nação moderno a entidade política dominante no sistema mundial. Todavia, como esse “sistema mundial” é constituído de Estados com estágios de desenvolvimento e importância econômica, militar e política distintos, seus governos centrais desempenham papéis e assumem feições igualmente distintas, tanto historicamente quanto nos dias atuais.

Essa foi a situação que se verificou no Brasil, a partir do momento em que o Estado, na condição de “comitê que administra os negócios da classe burguesa” – segundo a clássica expressão do Manifesto Comunista – assumiu sua incapacidade de criar alternativas à globalização, rendendo-se à orientação hegemônica neoliberal de que o mercado acomodaria as tensões existentes e seria o mecanismo único a constituir uma nova era de prosperidade econômica.

É neste sentido que se pode questionar a ação dos governos, e do Brasil em especial, que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da sua responsabilidade em promover a justiça social. Esta, por sua vez, não tem nas intenções invasivas do Estado seus maiores obstáculos; ao contrário, esses afloram diante de sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo de que não há alternativa. Assim, o desmantelamento dos aparatos normativos, em particular aqueles que estabelecem garantias e direitos sociais é a consequência natural.

Em conclusão, diante das considerações acima, é plenamente explicável o esvaziamento das (escassas) manifestações programadas para o 1º de Maio de 2024. Há cada vez menos trabalhadores organizados em sindicatos de classe. As Centrais Sindicais não conseguem aglutinar os poucos sindicatos e federações que ainda resistem. Os trabalhadores, em geral, e os operários, em particular, ainda que tenham a consciência de que é preciso se organizar para defender seus cada vez mais raros direitos, estão na luta defendendo sua sobrevivência cotidiana. Nesse contexto, não há tempo para manifestações, ainda que com a presença do maior líder político surgido nos últimos 50 anos no País.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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