Cena I
Nestes atordoantes dias deste século o tempo tomou outro ritmo e uma outra significação. O tempo parou em casa. Estancado. O tempo acabou-se para muitos. Findou-se nos hospitais ou a caminho, aonde o destino chegou antes do que um respirador. Deixando assim, um amor a soluçar. Ponto. Pausa. Respiração. As cenas desta tragédia que em mil e uma noites e anos posteriores serão revisitadas com ou sem máscaras pelo toque mágico da arte, ainda latejam e pulsam dentro de nós, ao nosso lado, ou em terras distantes, nos dando medo e sensação da solidão de um teatro fechado.
Cena II
Onde estamos? Estamos sozinhos. A solidão fez-se lugar. Ao falar de perda, dor e de rito de despedida lembro-me das carpideiras do meu Ceará. Lembro-me de seus choros e de suas “Incelenças”. Um canto que de todos os cantos da casa pode ser ouvido, ocupando assim a ausência que não quer sair de nossa vida. Mas, aquelas músicas chorosas que embalam o ponteiro longo e cansado de uma noite velada, trazem conforto, força e paz. Assim como as redes de dormir que vão e vêm, num movimento permanente e embriagador, que parece uma barriga de mãe grávida andando e balançando a criança inundada dentro de si, a música traz conforto à alma e ao corpo.
Cena III
A música que é das mais abstratas linguagens artísticas, provoca dentro de nós sensações concretas e espaciais. A música não só invade o espaço do mundo, ela invade o nosso espaço primeiro que é o nosso corpo. Como não sentir-se ocupado por uma música quando dançamos, batemos palmas, ou cantamos? Sim, pois a voz é o meu corpo que sai de mim e penetra nos sentidos dos outros. E se a música chora por nós, ou nos acalma, ela pode também nos fazer requebrar as várias partes, nos empurrar para uma euforia alegre e agregadora, e dá-nos força e coragem para a luta. Lembremos de que não existem Exércitos sem suas marchas, ou revoluções sem seus hinos.
Cena IV
Isto nos provoca a pensar que, para além de ser uma expressão de sentimentos, a arte é um desejo de mundo. A arte é processo de invenção e reinvenção da realidade. O impacto de uma obra de arte numa pessoa e numa sociedade pode provocar ações e mudanças de conjuntura. A sua dimensão mágica dá uma perspectiva libertária para a construção e vivência do que se entende por impossível até aquele momento. Desenhando o mundo a gente vai entrando em cena.
Cena V
A arte também dá acesso ao entendimento. Tem situações nas quais a ciência e o discurso racional não conseguem chegar. Quando a realidade é demasiadamente bruta ou chocante, quando a sequência de acontecimentos é grandiosa e a sua complexidade exigiria um tempo não disponível para o indivíduo, muitas vezes interditamos o entendimento como medida de proteção. Neste momento, a arte nos ajuda a acessar a compreensão da realidade. O que significa ter mais de cem mil mortos? Não é compreensível. Mas, quando eu vejo as interpretações de atores e atrizes de textos que narram a vida de uma pessoa, eu entendo o tamanho da mortandade.
Cena VI
A partir de tudo o que foi exposto é que podemos entender por que mesmo com a campanha impertinente e obsessiva de desmonte das Artes no Brasil, que se iniciou após o Golpe de 2016, e se radicalizou neste verdadeiro Governo de ocupação, que é o atual, vemos uma corrida ao acesso às várias linguagens artísticas. Muito se tem ouvido, lido, visto, assistido. Mas também, muito se tem tocado, cantado, desenhado, pintado, fotografado, filmado, gravado, interpretado, escrito, construído. Num trabalho de resistência e sobrevivência a sociedade procura a vida nas luzes das ribaltas cibernéticas. Lives! Livres! Livros!Vivos!
Grand Finale!
Estamos vivendo uma mudança de Era. Assim como foi o fim do Século XVIII. Apesar de todo sucateamento, das agressões, dos homicídios diretos e indiretos, da destruição pelo fogo, transformando o verde em cinza, nós estamos nos reinventando. Brota um Brasil periférico, da mata e da cidade, e ele vem cantando, vem pintando, vem dançando feito Caboclinho de Pernambuco, resgatando-se em todas as suas dimensões. O Brasil que sofre suas mágoas chorando e cantando, enxuga suas lágrimas lavando o rosto com o suor de um corpo brincante. O Brasil não vai parar de dançar. É assim que vivemos, é assim que somos. E é assim que somos fortes. Se quisermos reconstruir o país, temos que mergulhar em nossa cultura popular, tradicional ou contemporânea, é lá onde saberemos o que fazer.
Final que não se acaba!
O Brasil tem originariamente uma cultura mestiça e de resistência. As mais antigas tradições culturais brasileiras, aquelas que fundam nossa cara, espaço e gente são expressões que nasceram de lutas por sobrevivência de uma humanidade brutalizada por processos colonizatórios. Todos os três povos que aqui se encontraram, viveram situações de necessidade e de resistência. Até os portugueses colonizadores, e por isso opressores, também trouxeram uma multidão de pessoas oprimidas e perseguidas pelo Santo Ofício. Não aportaram tão brancos como se imagina. Chegaram mouros, judeus e ciganos, arrastados nau a dentro rasgando as ondas do Atlântico. Na realidade, muitos foram chegados. Vieram com saudade.
Pulso percussivo
Para fazer o Brasil adentrar em si e ver-se preto, pardo, indígena, feminino e periférico é preciso pulsar nossos tambores, ouvir os nossos lamentos e ver as nossas cores. Senti-las em forma, versos e movimentos. O requebrar do samba, do forró, do maracatu, do carimbó, dos axés e do funk dirá a nós que somos tudo isso. Que somos a África deixada, a mata fechada, a Caatinga espinhenta. Mostrará que o racismo puritano é triste, desmaiado e desolador. Conquistará a nossa negritude em movimentos e percussões. E esta é a nossa luta, a nossa Catu Macã, o velho nome de Maracatu que quer dizer Guerra Bonita. Pois não sabemos apenas jogar, tem que ter drible, ginga, arabesco com pernas e braços, chutar de pernas tortas e colocar a bola entre as pernas retas do outro time. Para nós, não adianta só fazer gol, tem que ter arte.
Utopia Capoeira
Um bom capoeirista tem que saber jogar com sorriso nos lábios, alegria no corpo e plasticidade em sua luta musicada. As rodas de Capoeira são estruturalmente democráticas, pois elas são alimentadas pela melodia e pelo ritmo de todos. O movimento e o jogo não podem parar. Caiu? “Reconhece a queda, e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima.”, como cantou o sambista Vanzolini. E esta é a utopia que devemos perseguir. Há momentos de esquivas, mas lutemos com alegria, graça e ginga. E não se esqueça de preparar a sua Armada para a resistência e defesa. Não saia da roda, bata palma para um companheiro, dê-lhe força e ânimo para o embate, cante apaixonadamente, pois a música embala e incendeia os corpos. Faça da luta uma festa alegre e ardente! É assim o nosso jeito, é assim que gostamos de ser. Mesmo diante de tantas dificuldades e dores, nós lutamos em dança! Que o Brasil se encarne na utopia capoeira. Benção! E que assim seja. Que assim seja. Que assim seja.
Obrigada!