“Bethe boneca, princesa sapeca!”. Era assim que sua avó brincava com ela quando era bem pequena. Cresceu assim, entre ser princesa e boneca. Nos desenhos, encontrava-se nas personagens doces e sofridas até a chegada do galante príncipe encantado.

Na escola, conheceu os primeiros príncipes encantados. Uns eram bonitos como os príncipes dos desenhos. Outros, nem tanto. Mas Bethe sempre via neles algo de galante e alguma promessa de felicidade. E alegrava-se com os namoros até que acabavam. Quase sempre, o príncipe a abandonava. Ou a trocava por outra princesa. Foi nesta época que Bethe começou a desconfiar que a felicidade real não era como a dos contos de fadas. Não se pode ser feliz para sempre na vida adulta.

Mas mesmo com os molejos de amor machucados por um ou outro desencanto, o olhar de Bethe para a vida e os relacionamentos ainda era de encantado. Encantava-se com outro e outro. Passou por amores tórridos e efêmeros, mornos e carinhosos e até por amores frios e incertos. Aos 25 anos, julgava-se com grande experiência afetiva. O suficiente para escolher bem o parceiro para o resto da vida. O mais próximo que se poderia chegar de um príncipe encantado, para um romance de felicidade eterna. Começou a buscar o príncipe definitivo. Quase aos 30 anos, conheceu Cleiton.

Cleiton fazia o estilo soldado. Heroico e protetor. O par perfeito para uma princesa romântica que não poderia abrir mão de um príncipe devotado a ela. Dizia para os outros que era policial, mas Bethe sabia que era mentira. Ela achava uma mentira inocente, que até alimentava sua imaginação de princesa. Perto dele, não desmentia. Fingia acreditar. Coisa do amor, ela pensava.

O olhar vigilante de Cleiton, no começo do namoro, era voltado para os outros. Buscava ameaças físicas em volta dele e de sua amada. “Coisa de policial”, dizia. Bethe achava fofo. Via nisso uma prova de amor. E continuou vendo, mesmo quando o olhar paranoico de Cleiton desviou-se dos outros para ela. “Onde estava?”, “quem é aquele que olhou para você, você conhece?”. Viu nos ciúmes de Cleiton mais uma prova de amor.

Fazia questão de buscá-la na porta do trabalho e levá-la até a Universidade, onde fazia mestrado. Chegava antes e vigiava as pessoas. Se a visse conversando com alguém, seria uma briga. Para preservar sua felicidade eterna, Bethe afastou-se das amigas. Afastou-se mais ainda dos amigos. Um deles percebeu que algo de estranho acontecia com Bethe e lhe mandou uma mensagem. “Oi! Você está bem?”. Cleiton leu a mensagem enquanto vasculhava o celular dela. Foi a primeira vez em que Bethe apanhou de Cleiton.

No dia seguinte, pediu desculpas com um buquê de rosas à mão. Estava nervoso, justificou-se. Coisa de quem ama demais, disse. Bethe acreditou e perdoou. Assim como acreditou e perdoou das outras vezes. As amigas repararam que Bethe escondia os braços e pernas com roupas inadequadas para o clima. Também não puderam deixar de notar uma ou outra mancha roxa. Bethe desconversava. “Caí da escada. Sou desastrada”.

Quando Bethe contou, feliz, que estava grávida, Cleiton enfureceu-se. Queria saber se o filho era mesmo dele. Chamou-a de vadia e coisas piores. “Vai estragar o seu corpo!”. Bateu como nunca. Bethe apanhou como sempre. Como sempre, calada. E quanto menos reação Bethe esboçava, mais Cleiton batia. Demorou um tempo para Cleiton perceber que a falta de reação de Bethe era absoluta. Ela estava inerte, flácida. Cleiton pensou que estivesse morta.

Embrulhou-a numa grande lona plástica e a enfiou no porta-malas do carro. Esperou a noite avançar a madrugada e partiu para uma estrada deserta. Foi lá que esfaqueou o corpo ainda vivo de Bethe, que soltou um último gemido, entre os últimos espasmos da sua vida de princesa que buscava a felicidade eterna.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
Clique aqui para ler artigos do autor.