O Brasil procura a vergonha

Ilustração: Mihai Cauli

Um mistério vem sacudindo o País, o que levou o jornalismo investigativo a ir à busca da vergonha que sumiu. Seu sumiço era uma ameaça, pois se abriram as portas aos sem vergonhas. A Justiça viu tudo que ocorria e permaneceu omissa, com medo dos armados aceitando até interventor. Manchetes de revistas clamavam: “Por onde andará a vergonha?”, ou “Paga-se muito bem a quem indicar quem sequestrou a vergonha”, e ainda: “Os inimigos da pátria ameaçam a vergonha nacional”. Uma parte da mídia fazia de conta que tudo estava normal. O mundo ofereceu ajuda para colaborar na busca da querida vergonha, essencial na civilização. E também começaram a entrevistar profissionais sobre o que mesmo era a vergonha.

Um estudioso da Bíblia lembrou que a vergonha nasceu quando a Eva e o Adão comeram da árvore do conhecimento. Quando ambos se perceberam nus, logo taparam suas vergonhas com as folhas de parreira, começando assim a era do erotismo, e assim nasceu a humanidade. A vergonha nasce ligada ao erotismo, e Millôr Fernandes escreveu que o nascimento da Eva fez os animais no Paraíso festejarem sua saída de uma lagoa nuinha e clamaram: “Criador, Criador, Criador”, e aí Millôr foi expulso da revista Cruzeiro pela Igreja.

Um psicanalista afirmou que a vergonha tem a ver com o erotismo, mas também com a moral, pois a vergonha é o medo do olhar do outro que pode condenar. Aliás, vergonha, é uma palavra ausente dos dicionários de psicanálise. É possível pensar que a vergonha se instala na fase edípica, pelo medo de perder o amor dos pais – que, aos poucos, vão sendo introjetados através das identificações. Vergonha é, portanto, um sentimento penoso decorrente da civilização. Quando se perde a vergonha, a Lei é desprezada, é possível mentir à vontade, burlar as leis, como “não matarás”, passa a valer tudo de um poder onipotente. É o que vem ocorrendo no neoliberalismo com sua voracidade crescente, que tem levado a um retrocesso civilizatório, ameaçando a humanidade.

A vergonha é um sentimento ligado à culpa, à necessidade de castigo, tendo a ver com a educação, com a escola, o olhar dos outros. Todo ser humano já sentiu alguma vergonha, seja do peso, da altura, da cor, da pobreza, de ser estrangeiro, ou um sentimento de exclusão, de não ser amado. Vergonha mortifica, é humilhante a ponto de gerar muito sofrimento. Escritores relataram sobre as suas vergonhas como Clarice Lispector, e Conceição Evaristo entre outros.

Vergonha é essencial em qualquer sociedade, entretanto os ditadores ou presidentes autoritários tendem a ter pouca vergonha. Fazem o mal e mentem que estão fazendo o bem, convencem seus cercadinhos que os aplaudem e fazem de conta que têm vergonha. São os poderosos que atacam a Lei, a função paterna, ligada aos mandamentos, a vida em sociedade. São covardes, mentem, são cúmplices dos crimes, mas têm medo do amanhã.

A vergonha está fazendo falta, pois sem ela há um desprezo pela vida, pelos mortos, e a natureza. O País precisa encontrar a senhora Vergonha, nossa vergonha, pois ela é indispensável para limitar a maior das crueldades que o Brasil já viveu.

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