
Numa entrevista à Folha de São Paulo, o recém-ungido candidato da extrema direita Flávio Bolsonaro disse que “não reeleger Lula é o que salvará meu pai da prisão.” A carta está escancarada sobre a mesa. A meta número um, apresentada pelo próprio escolhido, é tirar da cadeia o sentenciado (27 anos e três meses de prisão em regime fechado). A frase se assemelha ao slogan da perpétua campanha bolsonarista: “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” à qual se poderia acrescentar “e a família Bolsonaro antes de quem quer que seja”. Tudo começa e termina com Jair Messias e sua prole. Se conseguirem torná-lo mártir, logo será eleito pai da pátria, fundador da nação.
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Mas comecemos com Deus, aquele de todo mundo, e pertencente às mais diversas religiões, o criador do céu e da terra e protetor de todas as criaturas do planeta. Dada a maneira como aparece nos repetitivos discursos dos bolsonaristas, no entanto, é como se essa entidade universal fosse a mais poderosa aliada da causa bolsonarista. Ou como se Deus tivesse escolhido um lado ou bando ou candidato à Presidência da República. Como se Deus pertencesse a eles e a mais ninguém, muito menos aos seus adversários políticos – uma maneira bastante grosseira de apagar o outro, todos aqueles que não são eles, excluindo-os até de suas crenças básicas. “Deus está do nosso lado e quem está contra nossa família está contra Ele”, dirão. Porque para o clã, essa é a ordem natural do universo.
Poucos dias depois de Jair Messias colocar para escanteio a possível candidatura da esposa Michelle Bolsonaro, indicando o filho mais velho como o seu candidato, uma obediente ex-primeira-dama se manifestou assim:
“Que Deus te abençoe, @flaviobolsonaro, nesta nova missão pelo nosso amado Brasil. Que o Senhor te dê sabedoria, força e graça em cada passo, e que a mão d’Ele conduza o teu caminho para o bem da nossa nação” (a mensagem é seguida por um coraçãozinho verde). Em duas frases curtas, os serviços do Criador são solicitados três vezes. Com tamanha ênfase é possível que, em detrimento de todos aqueles que não são eles, sejam mesmo socorridos por Ele nessa hora de infortúnio e queda.
Mas outra marca registrada da família é a mais completa falta de originalidade. Seus discursos quase sempre se parecem mais a um caleidoscópio montado com pedaços recolhidos ao acaso no pequeno mapa da história que seus cérebros são capazes de acessar. O curtíssimo repertório de lemas alimentado pelo fanatismo e a teimosia e na maioria das vezes copiado dos seus guias espirituais norte-americanos é martelado no ouvido dos seguidores como se fossem uma bigorna. Nesse assunto da relação particular que mantêm com Deus não poderia ser diferente. No final de julho de 2024, Donald Trump “abriu o discurso de encerramento da convenção Republicana…, no qual oficializou sua candidatura (à residência dos Estados Unidos), garantindo, como um profeta: ‘Tenho Deus ao meu lado’” (ver O fascismo cruza a Europa, TP, 11/08/24). De modo que, ao que tudo indica, Deus definitivamente parece ter escolhido um lado.
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Pode ser que daqui a pouco o bolsonarismo se apresente com outro nome – ou marca – e outra(s) cara(s). A pouco menos de um ano da eleição para presidente, ninguém sabe dizer quem, com Jair Messias impedido de se candidatar, vai assumir o comando dos fiéis seguidores. Há os que dizem que o verdadeiro comando está bem longe do Brasil, amoitado – mas sem dar muita bola para se mostrar ou não e fazendo isso de acordo com as circunstâncias – entre os inspiradores mais radicalizados do trumpismo. De Washington, onde se refugiou, Eduardo Bolsonaro pode receber orientações diretamente dos mais renomados ideólogos da ultradireita mundial. E assim tem sido – ou alguém acredita que sozinhos seriam capazes de construir alguma estratégia de poder?
Polarização – existe uma terceira via?
Embora poucos, há os que lamentam a polarização que se estabeleceu no país, pelo menos desde a destituição forçada de Dilma Rousseff – e não são irrazoáveis alguns dos seus argumentos. Os que gostariam de se ver livres do duelo entre Lula e Bolsonaro, ou, noutros termos, entre os que se aliaram sob a liderança do PT e o balaio de gatos que junta a mais variada gama de ultradireitistas. E que acreditam que Lula e o PT, com suas alianças à direita, não são mais que um projeto neoliberal de esquerda – o que talvez seja mesmo uma ótima definição. O problema é que olhando o cenário estampado à nossa frente, os personagens que o ocupam e suas possíveis variações de curto e médio prazo fica extremamente difícil sequer ver esboçado de onde viria a alternativa àquela polarização e ao tal neoliberalismo de esquerda – para o qual até Guilherme Boulos parece ter sido atraído (ou cooptado), já como possibilidade, ainda que ninguém o diga, de ser o sucessor de Lula.
P.S. 1
Concluído o texto acima, as cenas da polícia legislativa, sob as ordens diretas do cada vez mais diminuto presidente da câmara dos deputados Hugo Motta, são como um soco na cara da democracia – antes de seguir adiante, vale lembrar, como o fez agora há pouco o líder do governo Lindbergh Farias, que não faz tanto tempo a cadeira da Presidência da Câmara esteve ocupada pelos bolsonaristas durante 36 horas sem que seu ocupante ousasse tomar a mais mínima providência. Enquanto finge não escutar as gravíssimas acusações que desde a tribuna lhe dirige Lindbergh, o minúsculo presidente da casa sorri e fala ao celular.
Pena que ao líder do governo não tenha ocorrido interromper sua própria fala para interpelar o arrogante principezinho: Presidente, eu estou me dirigindo à vossa excelência e as acusações que estou lhe fazendo não podem ser ignoradas, sob pena de que a cadeira que ocupa, mas que pertence à República, se esfarele como um cadáver. Desgraçadamente, não foi o que aconteceu.
A mensagem que resta não poderia ser mais cristalina. Se Lula se reelege, mas a atual correlação de forças no Congresso não se modifica significativamente (o que parece pouco provável), ou ele simplesmente não governa ou governa com um cabresto atado à boca – o que, sabendo o que Lula representa, também parece improbabilíssimo.
P.S. 2
Considerando-se as mesmas cenas referidas acima, torna-se ainda mais evidente a impossibilidade de dar um fim à atual polarização e ainda mais inimaginável a construção de uma terceira via à esquerda capaz de rompê-la.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “A esquerda radical deve apoiar Lula”, de Valerio Arcary.






