Putin, o presidente russo, alertou aos EUA que sua política de sanções iria minar o lugar do dólar como moeda internacional. Será que os Estados Unidos perderão seu privilégio exorbitante?

Na sua coluna do New York Times, o ganhador do Pulitzer, Bret Stephens se propõe a analisar de uma forma alternativa o comportamento de Putin, partindo do pressuposto de que a visão convencional do mandatário russo nos Estados Unidos “poderia estar equivocada”.

Ao contrário de vários analistas que comparam “Putin a um rato encurralado e perigoso, já que não detém o controle dos acontecimentos”, Stephens propõe ver Putin como “um zorro astuto, não como um tonto louco”. Neste caso, Putin não seria “o perdedor que comete erros de cálculo, como dizem seus críticos.”

Stephens tem razão sobre um ponto crucial. Os Estados Unidos deveriam preocupar-se com o risco de o dólar deixar de ser uma moeda internacional, o que pode ocorrer devido às sanções que os países da OTAN estão aplicando à Rússia pela guerra contra a Ucrânia.

Um privilégio exorbitante

Um informe de dezembro de 2020 do Congresso americano destaca que o dólar é a moeda dominante utilizada como reserva no mundo, desde a Segunda Guerra Mundial. O documento destaca que os bancos centrais mantêm cerca de 60% de suas reservas de divisas em dólares, aproximadamente metade do comércio internacional é feito em dólares e metade dos empréstimos internacionais e títulos das dívidas globais são dominados pelo dólar. Além disso, “o dólar é a moeda preferida pelos investidores durante grandes crises econômicas, como moeda para um “refúgio seguro”.

O informe realça o benefício de os Estados Unidos possuírem a “moeda de reserva dominante no mundo”, porque a demanda por dólares americanos lhes permite obter empréstimos baratos e em sua própria moeda, anulando os efeitos negativos das variações cambiais. Ademais, gozam do “privilégio exorbitante” – como chamou Valéry Giscard d´Estaing, ministro das Finanças da França na década de 1960 – de poder manter déficits consideráveis em seu balanço de pagamentos.

O economista americano Barry Eichengreen, em seu livro Exorbitant Privilege: The Rise and Fall of the Dollar and the Future of the International Monetar System, explicou esse “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos, para quem “custa somente alguns centavos produzir uma nota de US$ 100, enquanto para os outros países, os mesmos US$ 100 têm de ser pagos em bens reais”.

Henry M. Paulson, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, entre 2006 e 2009, reconhece o benefício de possuir a moeda internacional, e alerta que o país deve preocupar-se em “preservar as condições que criaram a primazia do dólar”. De forma similar, em maio do ano passado, no Congresso americano, foi apresentado um projeto para “apoiar o papel do dólar dos Estados Unidos como principal moeda de reserva mundial”.

Estados Unidos das sanções

Em grande medida, as recentes preocupações em relação à manutenção do dólar como moeda internacional foram provocadas quando a China lançou uma moeda totalmente digital, em 2020. Este temor foi prematuro, pois partiam do suposto de que a forma da moeda poderia definir o lugar da moeda na hierarquia internacional.

Quase dois anos depois, os Estados Unidos voltam a preocupar-se com a continuidade do dólar como moeda internacional. Num informe recente, o FMI registra “a erosão sigilosa do domínio do dólar”, mas como destaca Vivekanand Jayakumar, neste caso está relacionado às sanções implementadas contra outros países.

Embora a causa imediata dessa discussão sobre o futuro do dólar como moeda internacional esteja relacionada às sanções aplicadas sobre a Rússia nos marcos da guerra da Ucrânia, vários países vêm sofrendo sanções durante as últimas décadas. Por conta destes excessos americanos, Daniel Drezner rotulou o país de “Estados Unidos das Sações”, no Foreign Affairs.

A exclusão da Rússia do sistema SWIFT despertou em países que já sofreram com estas sanções a intenção de se distanciarem da zona do dólar de maneira unificada. Como explica Drezner, é o dólar como moeda internacional que permite as sanções econômicas.

Zongyuan Zoe Liu e Mihaela Papa no Foreign Affairs, alertam ao governo dos Estados Unidos sobre a formação de um “eixo anti-dólar” e avisam que os Estados Unidos devem “estar conscientes das consequências indesejáveis de sua política de sanções e [devem] encontrar formas de minar a união da Rússia e da China pela desdolorização”.

A preocupação faz sentido, Wen Sheng, editor do Global Times chinês declarou que “as nações deveriam trabalhar juntas para minar o domínio do dólar” que junto com a libra esterlina e o euro sustentam um sistema que beneficia “as economias desenvolvidas ocidentais para continuar saqueando recursos naturais e mão de obra barata dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos”.

Polo anti-sanções

A China deixou claro seu posicionamento a favor da Rússia na guerra da Ucrânia, pois entende que a OTAN está arrastando o planeta a uma nova Guerra Fria. No mesmo encontro, realçou sua amizade “sólida como uma rocha” com a Rússia. Os dois países manifestaram a intenção de encontrar formas de se relacionarem entre eles sem usar o dólar.

Índia, Irã, Arábia Saudita também expressaram essa intenção, sondando a possibilidade de usar o yuan ou a rúpia. A China e os países da ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático – dizem que avançaram nas suas relações de comércio e investimentos distanciando-se do dólar. No mesmo sentido, os países da União Econômica da EURASIA afirmam terem feito progresso com a China em direção a um sistema financeiro e monetário independente. A Rússia, além disto, está exigindo que os importadores de sua energia lhe paguem em rublos.

Estes diálogos ocorrem em meio aos acordos comerciais e encontros diplomáticos dos governos da Arábia Saudita com a China. Alguns países do Golfo, mais a Venezuela e o Paquistão rechaçaram aproximações com Biden e têm feito acordos com a Rússia. De sua parte, a China mantém diálogo com o Afeganistão, em situação calamitosa – com 95% de sua população passando fome – depois da retirada abrupta dos Estados Unidos, em agosto. Estes países, junto com a Síria e Coreia do Norte, sofreram os efeitos da dura política externa americana.

A maioria dos países do mundo optaram por não aplicar sanções econômicas contra a Rússia, entre eles vários países africanos, a Turquia, a Liga Árabe, Israel, México, Brasil e África do Sul. Apenas Canadá, Austrália, Japão, Bahamas, Taiwan, Coreia do Sul e Singapura, países claramente alinhados aos Estados Unidos, aplicaram sanções, junto com a União Europeia e Reino Unido.

Como explica Jerry Grey, o PIB dos países que aplicaram sanções representa cerca de 40,7 bilhões de dólares, contra 36 bilhões dos que não o fizeram. Mas os 42 países que aderiram à sanção têm uma população inferior a 1,5 bilhão de pessoas, o que significa que 80% da humanidade habita nos outros 151 países.

Mordendo a mão de quem lhe dá de comer

Neste contexto, no qual muitos alertam para os riscos de o dólar deixar de ser moeda internacional, Sebastian Mallaby, economista do tradicional think-tank Council on Foreign Relations, afirma que devem ser “ignorados os detratores. O domínio do dólar veio para ficar”. Seu argumento é similar ao informe do Congresso americano, que destaca o domínio indiscutível que o dólar tem nos mercados financeiros e comerciais do mundo, enquanto a moeda da China e da Rússia juntas têm apenas uma presença marginal e insignificante.

A política de sanções, no entanto, conduz vários países a buscar outras moedas, para evitar serem afetados. É o que explicou Putin à jornalista Hadley Gamble da CNBC em outubro passado.

Intervindo desta forma com o dólar, disse Putin, os Estados Unidos “debilitam sua posição de moeda como reserva mundial”, porque os países são forçados a distanciar-se dele como meio de troca. O sábio ou o louco Putin concluiu que os “EUA mordem a mão que lhe dá de comer”. (Original publicado no El Cronista, 31/03/2022).

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  Revisão: Celia Bartone e

Tradução: Eduardo Scaletsky