A ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher sintetizou em uma máxima a essência do neoliberalismo: “não existe sociedade; existem indivíduos”. Esse pensamento representa a apoteose da concepção individualista nascida na Era Moderna, com a negação radical da ideia de uma identidade coletiva de certa comunidade, identidade essa reforçada por laços de solidariedade entre seus membros. Nessa espécie de nominalismo social, a coletividade perde seu sentido político e moral; as relações humanas passam a se constituir exclusivamente a partir de interesses individuais.
O corolário lógico do esvaziamento da ideia de comunidade, fundada em compromissos éticos de solidariedade, como se fosse uma fantasia metafísica, foi a desconstrução do Estado, enquanto agente regulador das relações sociais e provedor do bem-estar coletivo. Para a utopia neoliberal, se assim podemos substantivá-la, ao Estado caberia apenas o papel de mantenedor da ordem jurídica e garantidor de contratos livremente estabelecidos pelos indivíduos.
Essa concepção de sociedade tem um correlato em termos de política econômica: a anatematização das políticas públicas de regulação econômica capazes de promover o desenvolvimento econômico e a justiça social. Sobretudo após a década de 1970, certa ortodoxia conservadora se tornou bastante influente, concentrando ataques na ideia de que mesmo as sociedades capitalistas ocidentais sofriam de excessivo dirigismo estatal, e que tal distorção se materializava em déficits fiscais e estagnação. Por contraste, passaram a ser exaltadas as virtudes da austeridade fiscal e do “laissez-faire”, como estratégias governamentais.
Eis que, no entanto, surge a maior crise sanitária dos últimos cem anos, de consequências devastadoras. Qual a lição que essa trágica conjuntura nos ensinou? Somente um sistema público de amparo social é capaz de fornecer alguma rede de proteção, que torne a vida em sociedade possível.
No plano internacional, assistimos então a uma reorientação das políticas norte-americanas, recém-saídas da experiência sombria do governo Trump. Ainda que o fiscalismo exportado pelo pensamento político americano hegemônico seja bem mais para aplicação externa, parece ter sido definitivamente abandonado no atual governo dos Estados Unidos, com a implementação de expressivos programas de gastos públicos destinados a estimular a economia. Contudo, a reorientação política em andamento no governo Biden não se resume apenas à adoção de um expansionismo fiscal, mas também inclui medidas tributárias apontando para princípios de justiça social, como, por exemplo, o aumento da taxação dos mais ricos. Some-se a isso, também, uma sinalização à cooperação internacional, com o apoio à quebra de patentes das vacinas contra a Covid-19.
Entretanto, se, no plano externo, a ocorrência trágica da pandemia parece ter impulsionado uma revalorização de concepções sociais e humanitárias dominantes no pós-guerra – mas enfraquecidas nas últimas décadas do século passado, e mesmo na primeira deste século, no Brasil -, o mainstream político permanece aprisionado no mesmo pensamento neoliberal prevalecente antes da crise sanitária. Diante de uma catástrofe em termos de perdas de vidas, que transborda inevitavelmente para uma crise econômica de imensas proporções, com índices inauditos de desemprego, ouvimos falar recorrentemente dos equilíbrios fiscais, da necessidade de observarmos os “tetos de gastos”, da contenção e dos cortes. Prescreve-se a dobra na dose do remédio, cuja presença no organismo intoxica letalmente o paciente! Esse fiscalismo desenfreado tem como efeito prático tão somente a desarticulação completa dos serviços e políticas públicas, exatamente no mesmo momento em que testemunhamos, por exemplo, a dependência quase absoluta da sociedade em relação ao sistema público de saúde no combate à pandemia.
Construída à base da exploração mais brutal, a sociedade brasileira parece ter uma dificuldade genética de se estabelecer sobre bases mais justas e humanitárias. As relações de força mais arcaicas têm aqui uma sobrevida difícil de se neutralizar; os processos civilizatórios, uma natureza essencialmente metaestável, sempre pronta à regressão.
Apesar disso, a tragédia que vivemos talvez não seja em vão. Frente a uma crise de grandes proporções como essa, não há outra esperança a não ser nos vínculos sociais que ainda resistem. Nesse momento, parafraseando às avessas a máxima neoliberal acima citada, não haverá indivíduos capazes de dar uma solução ao problema, mas somente a sociedade, operando de forma solidária.
Medidas práticas se imporão urgentemente. Será preciso eliminar as amarras econômicas que o próprio poder público insensatamente se aplicou. Revogar as absurdas medidas fiscalistas, como a emenda constitucional de limite de gastos públicos, e rejeitar veementemente outras de mesma natureza. Será preciso devolver ao Estado a capacidade de operar anticiclicamente, retirando a economia do poço da retração. Será preciso também fazer reverter essas pretensas reformas, tão saudadas pelas elites como a panaceia para nossos problemas sociais e econômicos, mas que, sem qualquer resultado positivo, apenas nos distanciaram ainda mais dos ideais de uma sociedade civilizada. Será preciso reconstruir as relações de trabalho, em moldes mais humanos.
Essa triste ocasião talvez possa nos proporcionar essa lição: a de recuperarmos nossa humanidade, porque só assim afastaremos de nós a barbárie.
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