Ontem foi o Dia das Mulheres — nada melhor do que conversar com Regina Toscano, uma mulher protagonista da história do país.
Os dias seis de março têm um significado especial na vida de Regina Toscano. Ao acordar, num impulso, ela publicou no seu Facebook um episódio marcante na sua vida, dia seis de março de 1970, há 55 anos. Suas palavras foram direcionadas aos jovens que não viveram a escuridão dos tempos da ditadura militar no Brasil.
Segundo Sérgio Rosa, que assim como Regina é assessor da vereadora Maíra do MST, no Rio de Janeiro, seu texto circulou entre os jovens que participam do mandato. Eles e a vereadora fazem parte da nova geração, da qual depende a defesa da democracia, constantemente ameaçada por antigos e novos algozes. Conhecer a história do país é uma forma de fortalecer a luta.
Nossa Guerreira, como a chamou Sérgio Rosa, ou nossa Comandante, como todos a chamam, escreveu o seguinte:
“Foi no dia 6 de março de 1970 que fui presa, após uma panfletagem na porta da Cisper, no Jacaré. Éramos sete. Fomos em dois carros. Era época de dissídio dos trabalhadores da fábrica e a repressão dos patrões não permitia nenhum tipo de organização e reivindicação.
Tinha 22 anos, estava na clandestinidade porque era procurada pela polícia política por minha militância estudantil na Universidade Estadual da Guanabara, atual UERJ. Nesse período, eu passei a atuar no movimento operário. Tínhamos contatos em algumas fábricas e fazíamos agitação e propaganda para tentar mobilizar os operários e discutir com eles a necessidade de se organizarem em torno de suas lutas. Na época, os trabalhadores não podiam ficar num canto conversando com outros operários, logo era dedurado ao patrão pelo capataz, ameaçado de demissão ou mesmo de denúncia aos órgãos da repressão.
Ao chegar ao portão da Cisper, sentimos algo estranho no ar. Nossos contatos não apareceram e, após nosso comício relâmpago, escutamos a sirene do carro da polícia. Entramos rapidamente nos carros e logo começou a perseguição. Quando entramos na estrada Velha da Pavuna, eles começaram a atirar. Eram várias viaturas. Respondíamos ao tiroteio como podíamos, mas nos faltava prática para agir em situações como essas. Em poucos minutos, nossos carros se separaram, mesmo sem termos essa intenção. O meu foi alvejado em vários locais, inclusive nos pneus. Saímos correndo e um morador nos disse para atravessar a pedreira que sairíamos em outro bairro.
Esqueci-me de dizer, eu estava grávida. Seguimos a orientação do morador. Pouco depois anoiteceu e julgamos que ninguém saberia o local onde estávamos. Ledo engano! Depois de uma hora subindo a pedreira, olhamos para baixo e vimos que eles estavam com holofotes tentando nos achar. Entramos numa fenda da pedreira, esperando escurecer para atravessarmos para o outro lado. Ali ficamos algum tempo e começamos a escutar vozes. De repente eles enfiaram vários fuzis na entrada da fenda e começou nosso martírio. Ali mesmo nos deram pescoções, enfiaram a mão em todas as partes de meu corpo. Fomos pro DOI-CODI, da Barão de Mesquita, na Tijuca. Lá soube que os companheiros do outro carro foram baleados.
Aquela jovem cheia de sonhos começa a sentir no corpo e na mente o que era tortura: choque elétrico, pau de arara, palmatória, soco generalizado e, para completar, o aborto. Paro aqui meu relato desse dia. Antes declaro que ainda tenho sonhos e energia para continuar na luta por um Brasil mais justo e soberano, com menos preconceito.”
Regina ficou presa por um ano e foi um dos personagens do filme Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat, ao lado de Rosalina Santa Cruz, Criméia Schmidt Almeida, Estrela Bohadana, Jessie Jane Vieira de Sousa, Maria do Carmo Brito e Maria Luiza Garcia Rosa. No documentário, Regina descreve em detalhes a violência da prisão e da tortura.
Mas como é próprio dela, ninguém consegue aprisionar sua alma. Por natureza, qualquer conversa com Regina vem acompanhada de projetos para a construção de um mundo melhor. Quem a conhece sabe disso, e não se surpreende por ela ter encerrado seu texto dizendo: “Tenho sonhos e energia.”
Há poucos dias, em outra postagem sobre os 45 anos do PT, Regina lembrou que em 1979 saiu às ruas para coletar assinaturas necessárias para legalizar o novo partido, “voltado aos mais pobres”. O final do texto não poderia ser mais Regina: “Que bom que faço parte de você, PT! Feliz 45 anos!”
A vida política da Regina desde os anos 1980 mesclou-se de uma forma simbiótica com a trajetória de Jorge Bittar, uma das maiores lideranças do PT do Rio de Janeiro. Regina foi coordenadora de campanha de praticamente todas as suas participações eleitorais ao executivo e legislativo. Esteve junto com ele na secretaria de Estado, na secretaria municipal e depois na presidência da Telebrás.
Élvio Gaspar, uma das pessoas mais próximas da dupla, avalia que eles tinham uma relação muito saudável e complementar. Enquanto Bittar dificilmente dizia um não, cabia a ela trazer as coisas para os seus devidos lugares, mediar, dizendo sim, se possível, e não, se necessário.
Rui Roosevelt conheceu a Regina como Chefe de Gabinete do então vereador Jorge Bittar. No seu relato confessou que ficou “um pouco assustado. Certo dia, sem mais nem menos, ela me mandou tomar no c*. Depois fui me acostumando com seu jeito falsamente agressivo de manifestar carinho“. Quando o Bittar encerrou sua trajetória parlamentar a Regina manteve as reuniões que fazíamos no gabinete na casa do Élvio e da Edna.
Foi mais ou menos nesta mesma época, provavelmente na casa deles que o Élvio recorda de um episódio emblemático, que muitos do grupo dos quais fazem parte Bittar e Regina irão lembrar. Foi quando Bittar optou por não mais se candidatar a deputado federal. Bittar sugeriu que Regina fosse trabalhar na campanha de Lindbergh Faria, mas para Regina, brincando ou não, ela considerou que o “Bittar a deu de presente para o Lindbergh”.
Amigos de longa data de Regina, quando chamados a falar sobre ela, destacam sua força, sua defesa da vida e seu compromisso com o presente. Quando relembra o passado, é sempre para projetar o futuro, mantendo os pés fincados na realidade. Sua trajetória nos remete à Eunice Paiva, como retratada em Ainda Estou Aqui.
Regina vive intensamente o presente — não se deixa prender ao passado, nem cultiva ilusões sobre o futuro. Talvez por isso seus amigos a chamem carinhosamente (e um pouco por medo, rsrs) de Comandante Regina.
Arthur Obino conhece Regina desde os tempos do Comitê Brasileiro pela Anistia, no final dos anos 1970. Como bom criador de frases, ele a resumiu em duas palavras: “Organizadora e Comandante.”
Nas reuniões, Regina é, invariavelmente, a pessoa preocupada com a construção. Concede às pessoas o direito de voar alto em busca de sonhos, mas traça os limites necessários para que as ideias ganhem forma. É nesse momento que surge sua outra característica: a de Comandante. Afinal, conversas e debates existem para se transformarem em ação – e é nessa virada, na passagem do planejamento para a execução, que Regina assume seu papel de Comandante.
Como disse Élvio, a partir do momento em que veste o papel de Comandante, passa a ser impossível negar um pedido dela, pela consistência do que pede, pelo respeito à sua trajetória, ou pelo simples medo de dizer não…. Segundo Sérgio Rosa, “se Lula criou o PT, Regina foi uma de suas principais construtoras”. Regina e ele estavam juntos em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo no dia da prisão de Lula. Regina já estava na linha de frente: “… junto com a Juventude do Povo sem Medo, fazendo o piquete para impedir a entrada da Polícia Federal.”
Voltamos para o Rio chateados, tristes pela prisão ilegal do amigo Lula, mas determinados a lutar por sua liberdade. Durante a viagem de volta ao Rio de Janeiro, o assunto era a organização da resistência – longa, mas vitoriosa. Para fazer acontecer, destacou Élvio, ela é insuperável, por sua capacidade de convencer as pessoas, ao mesmo tempo em que manifesta uma alegria sincera de estar participando de coisas importantes coletivamente.
Sempre transparecendo seu estilo discreto, no dia primeiro de janeiro de 2023, Regina poderia ter assistido à posse de Lula em muitos lugares, mas preferiu estar nos gramados da Esplanada dos Três Poderes, junto ao povo, para ver de longe o carro aberto que trazia Lula. A emoção era tanta, e o sol tão forte, que ela acabou desmaiando. Foi atendida pelos paramédicos ali mesmo e, pouco depois, já estava de volta, celebrando com a multidão.
“Regina é assim”, disse Sérgio Rosa. Certa vez, após uma discussão acalorada sobre algum assunto qualquer, ela ficou “de mal” comigo. Para fazer as pazes, “enviei-lhe rosas”. Mas Regina não hesitou – jogou o ramalhete inteiro no lixo. “O gesto foi de fúria, mas ao mesmo tempo gracioso. Quase me apaixonei por ela, falando como revolucionário… Mas foi apenas o tempo que resolveu tudo”.
Qualquer outro companheiro ou amigo que falasse sobre Regina talvez trouxesse novas histórias, mas dificilmente fugiria da descrição feita por Arthur, Élvio, Sérgio, Rui e eu. Como eles disseram de forma recorrente, Regina é uma pessoa que não esconde suas posições e sentimentos. Este artigo não ficaria completo sem trazermos a visão que a nova geração de militantes têm da Regina. E quem melhor expressou isso foi a jovem de 29 anos, Maíra do MST, de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio. Para ela, “Regina é uma militante irretocável. Sempre atenta, comprometida, puxa as orelhas pela disciplina, sem perder a ternura, nunca”. E a vereadora continua:
“… a Regina ensina muito sobre a necessidade de tocar a luta com paixão e firmeza ideológica, sem arredar o pé do que acredita, mas sem deixar que o endurecimento que a política muitas vezes cria (casca grossa) ultrapasse o amor pela luta e pelo povo (…) Regina sempre ensina muito, mas também é muito disposta a aprender! Ela não tem aquela arrogância que algumas pessoas têm por saber mais, muito pelo contrário. Acredito que Regina Toscano seja um dos melhores quadros que sua geração produziu. Combina a persistência com a utopia, disciplina, trabalho e é movida por sentimentos de amor pelo Brasil. Características típicas da geração de 68, que tentaram apagar e matar, mas que se mantém viva em Reginas que formam outras tantas gerações.”
Ainda bem que existem Reginas!
Assista: “Que bom te ver viva”, de Lúcia Murad.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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