No Brasil, muitos consideram as políticas de incentivo cultural como desperdício de dinheiro público. Nos governos Temer e Bolsonaro houve um notório descaso das autoridades com as áreas de ciência e tecnologia, educação e cultura do país, todas elas experimentando uma pífia execução financeira de seus orçamentos.
Resumidamente:
- Em 2017, Michel Temer vetou a Medida Provisória que prorrogaria a vigência da Lei do Audiovisual, alegando inexistência de fontes específicas de recursos.
- A área cultural ficou relegada a um posto de Secretaria, subordinada ao Ministério do Turismo, decerto, uma grande disfunção. Ocorreu um esvaziamento da Lei do Audiovisual, da Ancine e uma drástica redução dos desembolsos do Fundo Setorial do Audiovisual, que conta com fontes de recursos garantidas, provenientes da própria atividade audiovisual.
- Outro exemplo incompreensível, e que não ocorre nos países da OCDE, foi o veto do presidente, mais uma vez, à proteção do audiovisual brasileiro na TV paga, inundando nosso mercado de obras estrangeiras, sobretudo americanas.
- Houve um notório desmonte do “aparelhamento” de quadros e ideologias que a “esquerda” teria plantado nos órgãos estatais (demissão de expoentes da área educacional e cultural, com paralização parcial das atividades da Ancine);
- Política de “filtros” para definição de quais produtos seriam ou não passíveis de apoio (novos costumes morais – “affair” Bruna Surfistinha, por exemplo, “ausência” de conteúdo ideológico, enaltecimento da pátria, etc.;
- Arrefecimento do apoio a projetos que envolvessem críticas políticas, sociais ou econômicas ao establishment;
- Alteração da composição dos membros do colegiado da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura;
- Tentativas de desmonte dos Fundos que vinham funcionando com fontes de recursos legalmente asseguradas, o que se pauta no conceito neoliberal de redução do tamanho do Estado e, também, na instrução de analisar projetos caso a caso, reduzindo a automaticidade e transparência dos programas de financiamento existentes, além da redução dos desembolsos.
Felizmente, o Congresso Nacional, aprovou o Projeto de Lei 5.815/2019, de autoria do deputado Federal Marcelo Calero (CIDADANIA/RJ), propondo a extensão, de dezembro de 2019 até dezembro de 2024, do prazo para utilização do Regime Especial de Tributação para Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica (Recine), alcançando, além de outros diversos benefícios, os incentivos da Lei do Audiovisual. Contudo, a lei correspondente a esse PL foi vetada integralmente pelo presidente Jair Bolsonaro, sob o argumento de que a medida feria a Constituição, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Acontece que, felizmente, esse veto presidencial foi derrubado pelo Congresso Nacional, valendo a prorrogação até 2024, do prazo para utilização do Regime Especial de Tributação para Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica (Recine), incentivando a instalação de cinemas em cidades menores. Com isso, foi gerada a Lei nº 14.044, de 20 de agosto de 2020, que além de garantir a utilização do Regime Especial de Tributação para Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica (Recine) até 31.12.2024, também PRORROGOU os prazos dos seguintes benefícios fiscais voltados à indústria cinematográfica:
- as pessoas físicas e jurídicas tributadas pelo lucro real continuaram podendo deduzir do IR devido as quantias aplicadas na aquisição de cotas dos Funcines até o ano-calendário de 2024, inclusive;
- os contribuintes puderam continuar deduzindo do IR devido, até o exercício fiscal de 2024, inclusive, as quantias investidas na produção de obras audiovisuais brasileiras de produção independente, mediante a aquisição de quotas representativas dos direitos de comercialização das referidas obras;
- dedução do IR devido apurado das quantias referentes ao patrocínio à produção de obras audiovisuais brasileiras de produção independente, até o ano-calendário de 2024, inclusive, cujos projetos tenham sido previamente aprovados pela Ancine.
Na esteira dos estudos e consultas públicas da Ancine com vistas à regulação das plataformas de streaming foi identificada a necessidade de se estabelecer um marco regulatório equilibrado para os serviços de TV por assinatura e os das plataformas de streaming, com estímulos adequados à diversidade dos catálogos e à circulação dos conteúdos audiovisuais brasileiros, bem como em relação à cobrança das contribuições sobre o catálogo de filmes. Isso já era esperado, há algum tempo, a exemplo do que já acontece em inúmeros outros países. Nessa toada, em 16/04/24 a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal aprovou, de forma terminativa, o projeto (PL 2.331/2022) que estabelece a obrigatoriedade do cumprimento pelas plataformas de streaming de cota mínima de exibição de obras nacionais e de pagarem a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE).
O Projeto de Lei prevê que empresas com faturamento anual acima de R$ 96 milhões pagarão 3% e as que faturam entre R$ 4,8 milhões e R$ 96 milhões recolherão 1,5%. Já as plataformas com faturamento inferior a R$ 4,8 milhões por ano serão isentas do pagamento, o que é um primeiro passo para corrigir a situação atual de tributação extremamente favorecida das plataformas de streaming no Brasil, tanto em relação aos segmentos concorrentes (TVs pagas), quanto na comparação com outros países (carga tributária situada entre um terço e metade da dos demais países).
Plataformas de streaming com duas mil obras, por exemplo, terão que disponibilizar pelo menos 100 produções brasileiras. Já as com sete mil títulos, terão que oferecer ao menos 300 nacionais, sendo que metade terá que ser de conteúdo produzido por produtoras independentes.
A cota nacional vai entrar em vigor aos poucos, e só após oito anos será exigido 100% do cumprimento, fiscalizado pela Ancine. As regras se aplicam a todas empresas que atuam no Brasil, mesmo as que não tenham sede aqui, e também para plataformas de compartilhamento de vídeo, como YouTube e TikTok. O projeto, que não conta com unanimidade, deve seguir para análise da Câmara dos Deputados, existindo expectativa de que seja aprovado sem mudanças substanciais.
A regulação das plataformas de streaming é um assunto que está na pauta de diversos países. Em 17 de janeiro de 2024, 20 produtoras de audiovisual do Canadá, Austrália, Europa e América Latina assinaram um comunicado conjunto que estabelece diversos princípios orientadores para garantir uma regulamentação adequada das poderosas plataformas digitais de streaming induzindo-as a apoiarem a indústria do audiovisual nos países em que atuam. Dentre elas estão a AECINE – Associação de Produtores de Cine Independente (Espanha), Animação na Europa (Europa), AnimFrance (França), APA – Associazione Produttori Audiovisivi (Itália), APCA – Associação Produtores Cinema Audiovisual (Portugal), APFC – Alliance des Producteurs francófonos du Canada (Canadá), APIT – Associação de Produtores Independentes de Televisão (Portugal), AQPM – Associação Quebécoise de la Production Médiatique (Canadá), CEPI – Associação Europeia de Produção Audiovisual (União Europeia), CMPA – Associação Canadense de Produtores de Mídia (Canadá), EPC – Clube Europeu de Produtores (União Europeia), FIPCA – Federação Ibero-Americana de Produtores de Cinema e Audiovisual (América Latina), FPS – Associação de Produtores de Cinema Eslovenos (Eslovénia), PATE – Associação de Produtores Audiovisuais Independentes (Espanha), Produzentenverband (Alemanha), SPA – Produtores de Tela Austrália (Austrália), SPADA – Associação de Produção e Desenvolvimento de Tela (Nova Zelândia), SPI – Screen Producers Ireland (Irlanda), UPFF+ – Sindicato dos Produtores Francófonos de Filmes e Séries (Bélgica) e USPA – Union Syndicale de la Production Audiovisuelle (União Europeia).
O documento afirma que todas as plataformas que se beneficiam financeiramente da realização de negócios em um mercado local devem contribuir financeiramente para a criação de conteúdo local. Além disso, também destaca a necessidade de apoio ao audiovisual independente e insta os governos a intervirem nas falhas do mercado e nos desequilíbrios no poder de negociação comercial. Um ponto importante da demanda das produtoras é a manutenção do controle da propriedade intelectual, garantindo a participação financeira no sucesso gerado pelas obras independentes exibidas nas plataformas.
Plataformas como Netflix, Prime Vídeo e Disney+ alegam que suas estratégias atuais já são benéficas para os mercados locais e rejeitam qualquer necessidade ou possibilidade de intervenção estatal. O documento das produtoras aponta que a regulamentação do streaming deverá estar entre os maiores pontos de discussão em 2024, com leis específicas sendo discutidas em diversos países, dentre os quais Austrália e Canadá.
Em alguns países europeus, como Dinamarca, Espanha e França, as plataformas de streaming já são obrigadas a contribuírem com cerca de 5% de suas receitas totais, para fundos que apoiam produção de conteúdo local. Na Austrália, um projeto que já está em fase avançada, pretende introduzir cotas de conteúdo para que as plataformas ajudem no financiamento da política cultural local. No Brasil, a situação não é diferente. Por isso, foi formada a Frente da Indústria Brasileira do Audiovisual Independente (FIBRAv), que tem como principal objetivo auxiliar na aprovação de uma regulação do streaming no país, bem mais ambiciosa do que o PL presentemente em tramitação no Congresso Nacional.
O mercado brasileiro conta com mais de 200 milhões de consumidores de streaming e o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda (VoD) no Brasil, realizado pela Ancine em março de 2023, apontou que o Brasil lidera o ranking na América Latina com o maior número de plataformas. São 59 no total. Além disso, a presença de conteúdos nacionais é muito baixa nos serviços não-locais, na faixa de 6% na Netflix e na Amazon Prime, incluindo os produzidos por elas, no Brasil.
Ficamos na torcida para que o projeto de regulação das plataformas de streaming seja aprovado pela Câmara dos Deputados e sancionado pelo presidente.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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