A (in)visibilidade da rede tecnopolítica bolsonarista deixa clara a nossa intenção, identificar e examinar a rede tecnopolítica bolsonarista, seus atores, discursos e significados, visando, com isso, a investigar não só sua ação política, mas também seu impacto sobre a democracia do Brasil. Levamos em conta as relações entre cultura, tecnologia e política, derivadas dos fluxos de comunicação digital que sustentam a sua invisibilidade, percebida como uma cadeia de pessoas capazes de conduzir operações de desinformação, por mediação de rede e sobre o território, no intuito de estabelecer sua dominação sobre o país.(Empoli, 39)
Nos últimos anos, temos assistido a diferentes formas de uso de redes tecnopolíticas, que servem de veículo para o desenvolvimento de estratégias de ação autoritárias e que estão colocando em perigo a democracia no Brasil – e por que não dizer? – no mundo. Para comprovar essa afirmação, examinamos as relações que se estabelecem entre os atores que participam da rede bolsonarista, suas práticas de comunicação e difusão. O discurso produzido por essa rede é fruto de uma narrativa manipulada, o que resulta na atração rizomática de muitos seguidores, que, articulados, formam uma totalidade complexa, comunicando-se por canais de alta fluidez para alcançar um determinado sentido compartilhado, conferindo significado à ação política.
Nossa pesquisa foi desenvolvida no contexto das eleições presidenciais de outubro de 2018, para mandato a ser iniciado em 1º de janeiro de 2019, cujos principais concorrentes foram Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), e Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT).
As redes são formadas por diferentes grupos identitários, organizadas em nós (knots) e interconectadas pelas chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação, as TICs. A informática define-as como hubs, isto é, dispositivos físicos que conectam os atores de determinado grupo. Sua tarefa é receber a informação e a comunicação e transmiti-las aos demais membros do grupo. Cabe-nos aqui, portanto, examinar o conjunto de atores, assim como os vínculos, os fluxos de informação e comunicação existentes entre eles.
Essa pesquisa foi implementada logo após o primeiro turno do pleito de 2018, realizado no dia 7 de outubro, no qual Jair Bolsonaro recebeu 46% dos votos e Fernando Haddad 29%.
A figura 1 representa a rede bolsonarista. Nele podemos visualizar tanto os atores quanto os processos de comunicação. Essa representação tornou-se possível graças à ferramenta Netvizz, então disponível no Facebook.(1)
Figura 1. Grafo da rede bolsonarista no Facebook
Fonte: elaboração própria a partir da ferramenta Netfizz disponível no Facebook, outubro 2018.
Foi gerada uma tabela denominada Nodes, que apresentava 858 páginas associadas à rede. A somatória de likes de cada página forma a totalidade da rede. Assim, quando somamos o número de likes de todas essas páginas, chegamos ao elevadíssimo número de 609.114.404 (seiscentos e nove milhões, cento e quatorze mil e quatrocentos e quatro) atos de comunicação. Sua importância está associada ao processo de atração que constitui as identidades coletivas. Metaforicamente, é uma nuvem que sobrevoa o território brasileiro e promove a atração de milhões de pessoas.
Campos na análise da rede bolsonarista
A tabela Nodes do Facebook permite-nos identificar não apenas os títulos das 858 páginas e o ID dos membros, mas também os setores nos quais atuam e o número de likes.
Figura 2. Grafo da decomposição da rede bolsonarista em Campo
Fonte: Elaboração própria a partir da aplicação do programa Gephi, outubro, 2019.
A partir da verificação de cada uma das 858 páginas, identificamos oito campos que constam do Grafo 2, a saber:
- – ativista digital, que reúne um conjunto de atores que militam na web;
– político, que congrega as páginas representativas dos atores do campo político propriamente dito;
– mídia, formado pelos promotores e difusores da informação conservadora;
– defesa e segurança, que inclui os militares e as instituições focadas na segurança pública;
– ideológico, que abrange os chamados influenciadores que conferem ideologia à ação política bolsonarista;
– cultural, no qual se concentram celebridades, artistas, instituições de cultura, entre outros;
– capital, campo que compreende os agentes de todas as atividades econômicas;
– mídia alternativa conservadora, constituída por blogs, youtubers e outros atores, todos associados a uma ideologia conservadora.(2)
A existência de mais de 600 milhões de atos de comunicação dos seguidores exigia, evidentemente, uma análise sociológica. Mas como proceder a essa análise?
Recorremos à sociologia de Bourdieu (1998, 2004), que propõe analisar o espaço social mediante a aplicação da categoria “campo”, formas de pensar, ser e agir compartilhadas, e da categoria “habitus”, associada às práticas culturais no espaço. O título das páginas permitiu-nos levantar a identidade dos grupos e criar os campos (Bourdieu 1998, 2004b). O que nos permitiu decompor os campos, conforme quadro 1. Examinamos essa totalidade mediante a leitura da Figura 3.
Figura 3. Grafo da rede bolsonarista por campo
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados primários do Facebook, outubro de 2018.
Reunindo quase 250 mil likes, o campo da mídia conservadora foi o mais acionado, seguido pelo campo político, com 161 mil. A participação da mídia alternativa também merece ser destacada. Toda narrativa é uma estrutura simbólica que tem o poder de organizar o social. (Bordieu, 4) Sua colocação em prática produz narrativas cotidianas contraditórias, que criam instabilidade política. Isso pode explicar as práticas do presidente Jair Bolsonaro, focadas na defesa da aprovação de sua rede de seguidores.
Atores na tecnopolítica
Para avançar na análise, aplicamos o programa worldclouds que nos permite identificar os principais atores de cada campo.
No Campo Ativista Digital identificamos Tea Party Community, grupo que se opôs frontalmente a Barack Obama nas eleições de 2008 e 2012, e apoiou abertamente a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos no pleito de 2016. Uma das mais influentes organizações de direita nos Estados Unidos, The Heritage Foundation é um think tank conservador, que faz uma verdadeira apologia ao neoliberalismo, levando a liberdade individual e a redução da presença do Estado às últimas consequências.
Os grupos ativistas nacionais são os conhecidos “Vem Pra Rua Brasil”, “Não foi acidente”, “Fora Corrupção”, “Nas ruas”, “Quero me defender”, entre outros. Eles fazem uma defesa incondicional da nacionalidade, explicitando uma mobilização política de direita, cujo fim último era a eleição de Jair Bolsonaro.
Tudo indica que a presença de organizações internacionais – leia-se, norte-americanas – foi de vital importância nas eleições de 2018, no Brasil. Atuando de forma coordenada, elas produziram o discurso que veio a embasar a política do governo Bolsonaro, caracterizada por uma ideologia neoliberal, lida na diminuição do papel do Estado, pela privatização/entrega do patrimônio público/natural em benefício de empresas estrangeiras e pela supressão das políticas sociais. As decisões do governo primam também pela tentativa de eliminação de todo pensamento divergente – mesmo que seja o da Rede Globo – e pela individualização do corpo social.
No campo político, o presidente Donald Trump ocupa a centralidade, exerce a hegemonia sobre a estrutura de poder local e explicita a soberania dos Estados Unidos sobre o Brasil. Ele é seguido pelo senador Mitt Romney, candidato do Partido Republicano à presidência dos EUA em 2012, derrotado por Barack Obama. A esses seguem-se o do próprio Jair Bolsonaro e o de Marcos Feliciano – pastor da Catedral do Avivamento, uma igreja neopentecostal ligada à Assembleia de Deus. Também marcam presença o conhecido Movimento Brasil Livre (MBL), movimento social de direita, o então senador Aécio Neves, principal liderança do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff; o ex-jogador de futebol Romário Faria, senador pelo Estado do Rio de Janeiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho mais novo de Jair Bolsonaro e um dos principais artífices da formação da rede bolsonarista.
Os dados levantados permitem-nos afirmar, com toda segurança, que políticos nacionais e estrangeiros estavam mobilizados ativamente no apoio à candidatura de Bolsonaro. Essa disposição revela a clara interação entre diferentes atores no ciberespaço, que permite a transversalidade entre as escalas e esferas, integrando, numa mesma ação, políticos nacionais e internacionais, celebridades do mundo esportivo, movimentos sociais de direita e lideranças religiosas. Todos eles estão associados em torno de um objetivo compartilhado – a defesa do neoliberalismo econômico, de um ideário político de extrema direita e de valores morais tradicionais. Em outras palavras, fundem-se interesses convergentes em rede tecnopolítica, formando uma totalidade complexa e inaugurando formas de organização política pouco conhecidas na literatura.
Não menos importante é a participação de atores associados às instituições militares e de segurança. Quase a metade do número de páginas é composta por instituições de segurança pública e pelas Forças Armadas, que reúnem membros do Exército, da Marinha e Aeronáutica. Com Vladimir Safatle (2018), aprendemos como as diferentes subjetividades são importantes na orientação da ação política, são eles que criam o sentido de atração e adesão a um determinado grupo social, o que valoriza as relações verticais, paternas e lideranças que instauram a integração social. (Safatle, 2018, p. 37) Os processos de identificação são fundamentais na vida social e não seria diferente na formação da integração do espaço vital, como não poderia ser diferente na rede do espaço virtual. Uma identidade coercitiva atrai as outras e configura uma relação que faz emergir o poder constituinte de identidades coletivas. Queremos dizer com isso que o campo se constitui a partir da identificação de um coletivo com a liderança e resulta na formação de uma subjetividade violenta compartilhada.
A rede de Fernando Haddad
No intuito de estabelecer uma comparação com a rede bolsonarista, a pesquisa também examinou a formação da rede sociotécnica do candidato petista Fernando Haddad, no Facebook. Identificamos aproximadamente um milhão de seguidores, que organizamos em três campos, o político, o cultural e um terceiro, reunindo outros menos importantes. O quadro 2 apresenta a divisão por campo e o número de seguidores.
Quadro 2. Campos da rede Haddad
A separação nos três campos foi realizada a partir da leitura da tabela nodes, onde estavam indicados os nomes das páginas. Como podemos ler no quadro 2, o primeiro campo compreende as agências governamentais, com 65% do total; no segundo encontram-se os agentes/programas culturais, com 27%. Essa rede, formada no território da cidade de São Paulo, reproduz as relações vitais da gestão de Haddad à frente da prefeitura paulistana, entre 2013 e 2016. Essa rede, centralmente organizada, reúne instituições governamentais que oferecem atividades burocráticas e culturais à população de São Paulo. Trata-se, tão somente, de uma reprodução das relações vitais, que desconhece a dinâmica das relações virtuais.
Figura 4. Grafo da divisão dos campos na rede Haddad
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados primários do Facebook, outubro de 2018.
A partir dessa decupagem, figura 4, foi possível produzir as nuvens de palavras, apresentadas. No campo governamental, identificamos as organizações que fazem parte da prefeitura de São Paulo; na centralidade da rede, reconhecemos a presença de Fernando Haddad, o prefeito, em segundo plano a da Câmara Municipal, e em seguida a das secretarias municipais, destacando-se no conjunto a Secretaria de Educação. Rede do governo e ao mesmo tempo dos cidadãos, reproduz e estrutura de governo de poder político. É preciso estar atento, as tecnologias transformam os processos de comunicação no espaço e com ela o exercício da política.
Em outras palavras, a campanha do Haddad ignorou a possibilidade de usar as plataformas digitais e suas redes para fazer política. A relação entre a campanha do Jair Bolsonaro com a campanha de Fernando Haddad mostrou-se extremamente desigual, são em torno de 900 milhões likes, para 550 mil, na base de 20 para um, o que é muito grave. Como seria possível para Haddad e seus partidários ganharem a eleição?
Tecnopolítica e dominação no Brasil
Um dos princípios da teoria das redes é a sua invisibilidade. Ao investigar as redes e suas hierarquias, Ferguson (2018) destaca como o seu poder é derivado dessa invisibilidade. Não é demais lembrar que os membros da rede bolsonarista alcançaram a vitória nas eleições de 2018, inclusive pelo fato de que ninguém percebera a sua presença.
As redes sempre existiram e sempre tiveram o poder de produzir transformações. Por isso, é crucial presentificar a sua existência, reconhecendo o peso decisivo das redes tecnopolíticas, as quais se situam além dos partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais. São sistemas técnicos que unificam diferentes campos e inauguram formas nunca imaginadas de ação política.
Essa transformação exige um avanço epistemológico capaz de reconhecer, entre outros atores políticos, os influenciadores da web, os movimentos sociais, as igrejas, organizações da sociedade civil e as torcidas de futebol. Importa ter a coragem de examinar e compreender como atualmente a política é derivada da tecnopolítica, lendo-a como um ator político moldado pela inovação nas tecnologias de informação e comunicação.(3)Empoli, 2020, p. 40)
A tecnopolítica bolsonarista atravessa fronteiras, fixando no país uma cadeia de atores americanos que deixa suas marcas no território nacional. Existe uma associação efetiva entre a rede internacional dominada pelos EUA e a rede nacional, capitaneada por seus seguidores no Brasil. A presença de atores internacionais na política brasileira não é uma novidade; a novidade está no fato de eles intervirem pela mediação de redes tecnopolíticas.(4) Eles constituem um ator político de importância estrutural no contexto da crise da democracia no mundo.
Foi esse mesmo modelo de campanha eleitoral em rede tecnopolítica que elegeu Donald Trump presidente dos EUA, que garantiu a vitória ao Brexit no Reino Unido, que produziu a morte de 800 mil pessoas em Ruanda e que abriu caminho para um regime de extrema direita na Ucrânia. Ele teria sido usado em nada menos do que 48 países (Korybko, 2018).Estamos diante de uma rede internacional que promove um mesmo sistema de desinformação no mundo. Associado a uma ideologia de direita, ele replica, em diferentes países, o modelo de campanhas que foi aplicado com tanto êxito nos Estados Unidos e no Brasil.(5)
Somos alvo de uma guerra simbólica, ou híbrida, como prefere Korybko, que prescinde de armas letais, mas sufoca as instituições democráticas, as empresas nacionais, as instituições de ciência e de tecnologia, as manifestações culturais, a vida social, a educação e a saúde da sociedade. Essa rede tecnopolítica, ao unificar atores nacionais e internacionais pela mediação de tecnologias digitais, assume o controle do país e coloca em xeque a existência do Brasil como nação democrática e soberana.
Notas:
(1) Essa ferramenta, que indicava a rede de seguidores de cada página, ainda estava disponível por ocasião do primeiro turno. Lamentavelmente, ela foi, em seguida, retirada da plataforma Facebook, impedindo, assim, a identificação dos grupos organizados por mediação de redes sociotecnicas no mundo. Vale denunciar aqui que essa prática do Facebook constituiu uma usurpação do direito à transparência do que acontece no ciberespaço. (2) Vale mencionar que o nono campo é formado por um conjunto pequeno de seguidores, os Outros, os quais não conseguimos identificar. (3) Empoli, Giuliano. Os engenheiros do caos. 2020, p.40. (4) Para usar o conceito de EMPOLI (5) Ver o documentário Privacidade hackeada,
Referências bibliográficas
BOURDIEU, P.; CHAMBORDEN, J.; PASSERON, J.. Ofício de sociólogo. Metodologia na pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2007a. FERGUNSON, Nial. A praça e a torre. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. O Globo. Bolsonaro não é louco. Valor Econômico. Militarização nunca saiu do horizonte político. KORYBKO, Andrew. Guerras híbridas. 2018. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Agradecimentos: Agradecemos a Sergio Lamarão a precisa e clara revisão do artigo, que nos permite representar com rigor a nossa análise. Esse artigo e uma versão simplificada do aceito para publicação na revista Ar@cne, no prelo.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
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