Neste domingo, dia 25 de setembro de 2022, foi aprovado o novo Código das Famílias. Pode nos parecer estranho que direitos há muito conquistados pelas mulheres e incorporados em nossas famílias estejam no centro de um debate acirrado em Cuba. Passados seis décadas, a revolução política socialista não teve o dom de alterar suficientemente o caráter profundamente machista e patriarcal da sociedade. Que o diga a necessidade de proibição do casamento com adolescentes e mesmo a partilha de bens no divórcio. A busca pela igualdade de gêneros e dos papéis familiares – mas, especialmente, direitos sobre o próprio corpo – ainda é uma árdua luta levada pelas mulheres quase que sós. A reflexão sobre os itens destacados pela Federação das Mulheres Cubanas mostra o estágio de desatualização de direitos naquilo que não se refira ao coletivo. (NR)
Um novo Código das Famílias em Cuba (artigo publicado dia 25/09/2022)
Após longos, complexos e acirrados debates, no domingo, 25 de setembro, o Código da Família Cubano será submetido a um plebiscito, depois de certificado pelo Parlamento da ilha. A lei – que desperta grandes expectativas, tanto individual quanto coletivamente, bem como entre ativistas e minorias que veem nela um antigo sonho democrático prestes a ser realizado – somente poderá entrar em vigor com a aprovação popular.
Da mesma forma, setores liderados fundamentalmente pelas igrejas, têm feito campanhas ferozes contra o Código. E outros setores, que representam os chamados “valores tradicionais”, manifestaram sua discordância com o projeto.
O projeto
Após mais de vinte versões, baseadas em consultas populares em bairros, locais de trabalho e diferentes espaços, o Código – em onze títulos e mais de quatrocentos artigos – estabelece como eixos o afeto e a solidariedade e lhes confere valor jurídico. Dá destaque à discriminação e violência, protege setores vulneráveis e estabelece conceitos altamente revolucionários, como autonomia progressiva para crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, confere prevalência aos laços afetivos como fonte de filiação, possibilita a gestação solidária, transforma a autoridade parental em responsabilidade familiar, consente o direito de todas as pessoas ao casamento e à constituição de família, para que tantos casais homoafetivos possam finalmente se casar.
O novo Código também proíbe o casamento infantil e protege os idosos. Também reforça o direito da mulher de decidir sobre seu corpo e a família é reconhecida como um espaço socioafetivo, sem violência ou sobrecarga para as mulheres.
Mas, o que significa o voto favorável ao Código das famílias?
Embora Cuba seja pioneira em muitas das grandes batalhas na América Latina, como igualdades de todos os tipos, direito ao aborto, proteções à maternidade e outras, esse código representa o que muitos especialistas chamam de revolução dos direitos. E não nos enganemos: Cuba é uma sociedade onde as cargas culturais do passado ainda cobram seu preço. E esse código é uma bala no centro do peito do patriarcado, que não vai resolver preconceitos, mas, é certo, iguala em lei o respeito, a dignidade e os direitos de todas as pessoas e protege especialmente os mais vulneráveis, idosos, crianças e adolescentes e nada menos que metade da população: as mulheres. Do ponto de vista de gênero, o Código reforça a luta pela igualdade.
A Federação de Mulheres Cubanas listou o que considera de alto impacto para as mulheres da ilha:
- • Regula os direitos reconhecidos na Constituição da República, com especial destaque para o de toda pessoa constituir família, vida familiar, dignidade humana e plena igualdade.
• Regula os direitos de todas as mulheres em sua diversidade.
• Regula explicitamente o dever de cuidado familiar e a distribuição equitativa do tempo despendido no trabalho doméstico e de cuidado, sem sobrecarregar nenhum de seus membros.
• Reafirma o respeito pelos direitos sexuais e reprodutivos de todas as pessoas no âmbito familiar, o direito dos casais de decidir sobre seus filhos e, em qualquer caso, o direito das mulheres de decidir sobre seus corpos.
• Exclui o binarismo e a exclusividade da visão biológica dos laços e relações familiares.
• Garante forte proteção contra a violência de gênero no espaço familiar em todo o Código, em diferentes títulos e artigos, com efeitos específicos.
• Possibilita o casal adotar uma ordem de sobrenomes diferente da tradicionalmente paterna no momento do registro do filho ou filha.
• Estabelece rigorosos controles legais, médicos e judiciais para autorizar a gestação conjunta, que só ocorrerá entre parentes consanguíneos e entre pessoas afetivamente próximas, com a expressa proibição de obtenção de qualquer remuneração, presente ou benefício.
• Altera o conceito de autoridade parental para responsabilidade parental.
• A responsabilidade paterna é reforçada numa perspetiva de gênero com a co-responsabilidade parental, através de figuras como a guarda e cuidados partilhados, acordos para organizar as funções de guarda e cuidados, unilaterais ou partilhados, entre outros.
• Assegura o direito de todas as pessoas de se casarem/constituirem uma união afetiva de fato.
• Veta o casamento adolescente com sua proibição absoluta para menores de 18 anos, sem exceções.
• Possibilidade de pactuar o regime econômico do casamento. Mas aplicam-se regras invioláveis a todos os regimes de proteção de quem se encontra em situação de vulnerabilidade.
• Reforça a corresponsabilidade no cuidado da família e o valor econômico do trabalho doméstico.
• Aperfeiçoa a figura da pensão devida ao ex-cônjuge vulnerável.
• Compensação econômica para aqueles que se dedicaram ao trabalho doméstico e de cuidados.
• Estabelece a preferência à mulher na partilha de determinados bens familiares; cria regras de liquidação quando houver uma empresa familiar.
• Proteção contra assimetrias na união afetiva de fato.
Assim, não é de estranhar que os opositores deste código façam uma frente comum para tentar miná-lo e impedir sua aprovação. As duas posições que se enfrentarão nas urnas em 25 de setembro estão visíveis nas redes e em diferentes espaços de comunicação. Até agora, as tendências e as pesquisas apontam para sua aprovação, talvez não com a margem que a sociedade cubana está acostumada a garantir para seus documentos programáticos. Sabe-se que esta é uma batalha dura, em um contexto difícil do ponto de vista socioeconômico, e que essa veia está sendo explorada pela mídia de direita.
Mais uma vez Cuba enfrenta o desafio de defender sua soberania, atravessando o emaranhado de dificuldades e tentando garantir o futuro. É outro direito com letras maiúsculas que nós cubanos conquistamos há muito tempo. Agora será hora de defendê-lo como sabemos. Veremos no domingo.
(Publicado originalmente no jornal Mate Amargo, de 21 de setembro de 2022 )
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Tradução: Eduardo Scaletsky
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Paulo de Tarso Riccordi.
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