Ainda é cedo para uma avaliação completa sobre as eleições municipais de 2020, mas alguns componentes de qualquer análise séria já são visíveis. Vamos elencá-los sem que a ordem desenvolvida signifique uma hierarquização de importância ou causalidade.
Os dados eleitorais compõem um quadro importante de referências para a análise global desde que tenhamos o cuidado de relativizar a particularidade das eleições municipais em um país onde a dimensão dos municípios entre si é abismal. Dos mais de 5.500 municípios brasileiros, a maioria esmagadora possui menos de 10.000 habitantes. Apenas uma centena, entre capitais e cidades grandes, tem eleições com dois turnos. A população da cidade de São Paulo, por sua vez, supera os 12 milhões de habitantes, número superior à maioria dos estados do país.
Ou seja, apenas o número de municípios não é o melhor indicador para avaliar resultados, ainda que seja o preferido da mídia para dizer quem “ganhou” ou quem “perdeu”. Principalmente, para afirmar que o “PT foi o grande perdedor”, ou aquele colunismo de aluguel que a cada eleição afirma: “O PT acabou”!
Um critério mais objetivo é somarmos os votos recebidos pelos partidos. Mesmo assim, temos que relativizar o número de municípios em que o conjunto dos partidos pode apresentar candidatos, em um país dominado pela pandemia sanitária da Covid-19 e pela pandemia do preconceito, da intolerância e das fake-news que nos pequenos e médios municípios aterrorizam filiados e partidos do campo de esquerda com a perseguição, a perda do emprego e o constrangimento pela criminalização da política e a acusação leviana de “corrupção” e da “quebra do país pelo PT”.
Nesta eleição, não foi pequena a incidência da crise sanitária para a distribuição de verbas emergenciais aos municípios pela União. Foram mais de 50 bilhões de reais distribuídos aos municípios com enorme fragilidade de controle. O estado de calamidade pública permitia aos prefeitos eliminar licitações, facilitar tomada de preços, etc. A imprensa, diariamente, apontava irregularidades em todo o país. A reeleição foi fora da média. Mais de 60% dos prefeitos foram reeleitos!
A disputa política nessas condições depende menos dos partidos e mais do peso social do Lions, do Rotary, da maçonaria, dos clubes sociais e esportivos (inclusive de tiro), das associações comerciais e industriais, das Igrejas, das emissoras de rádio. Aí se recrutam as candidaturas que se apresentam sem um claro perfil partidário ideológico e programático. Vivendo ou acompanhando a política nos pequenos municípios é que se pode ter ideia do constrangimento e do preconceito que são criados pelos meios de comunicação, pelas fake-news nas redes sociais e pela intolerância nos cultos religiosos.
Sem isso, como explicar, por exemplo, que no RS, em 2018, o capitão Bolsonaro e seu partido, o PSL, receberam a maioria esmagadora dos votos e, agora, essa votação majoritária se voltou para o “11” e o “15”. Foi para o PP e o MDB, recordistas de vitórias nos pequenos municípios gaúchos, mais pela implantação social do que por opção programática consciente. Por sinal, PP e MDB são os partidos com o maior número de parlamentares, executivos e dirigentes acusados, julgados e presos por corrupção. Mas, pela cumplicidade da mídia continuam como partidos honrados (Sic!).
Avaliar o resultado pelo número de votos obtidos é mais objetivo do que o primeiro critério. Nesse sentido, MDB e PSDB, em relação a 2016 perderam 4 e 7 milhões de votos, respectivamente. O DEM, por sua vez, cresceu 3 milhões de votos e alcança vitórias importantes em Salvador, Rio de Janeiro, Florianópolis e Curitiba e sai com o cacife de quem mais cresceu. O PSDB mesmo perdendo eleitores é compensado pela vitória em São Paulo, Natal e Porto Velho. O MDB vence em cinco capitais: Teresina, Boa Vista, Porto Alegre, Goiânia e Cuiabá.
Esse é o bloco da centro-direita neoliberal que apoia a política do ministro Guedes mas não gosta de Bolsonaro apesar de o ter eleito. Mesmo assim, foi o principal beneficiário das eleições de 2020.
O Centrão (o centro fisiológico) está sendo absorvido pelo governo com cargos e orçamento – apesar do capitão “odiar a velha política” – mas sua fidelidade a qualquer governo depende exatamente da política de clientela e das benesses governamentais. PP e PSD tiveram crescimento de mais de 2 milhões de votos em relação a 2016, assim como o AVANTE que aumentou seus votos em 1,4 milhão. Os demais, PL, PROS e SD permaneceram nos patamares de 2016, enquanto o PTB, sob a direção do novo converso ao bolsonarismo, Roberto Jefferson, despencou um milhão de votos.
Para onde vai esse bloco? Sustentará Bolsonaro até o fim? Essa contradição do fisiologismo é difícil de decifrar. Inclinarão, certamente, para quem ofertar mais. Enquanto isso, as relações viscerais com Bolsonaro e à pauta neoliberal os levam a apoiar o governo, por pior que seja o custo disso para o país.
O bloco da centro esquerda tão almejado por Ciro Gomes não se saiu bem. Seu partido, o PDT, perdeu mais de 1 milhão de votos, o PSB diminuiu 3 milhões, a REDE, muito pequena, encolheu 600 mil votos e o Cidadania permaneceu no mesmo patamar de 2016.
A vitória em algumas capitais, no entanto, dará uma visibilidade e um caráter simbólico importante para as próximas lutas e disputas eleitorais pelo efeito demonstração nas capitais. Vitórias em Fortaleza e Aracaju (PDT) e vitórias em Recife, e Maceió (PSB) ajudam a quebrar o hegemonismo de direita do quadro eleitoral saído de 2016. Da mesma forma, dão fôlego a um projeto como quer Ciro Gomes. Um bloco que pareça progressista sem a esquerda e sem democracia interna, com base no caudilhismo no qual os partidos são apenas adereços.
O bloco bolsonarista de raiz, em relação a 2016, cresceu: Republicanos (1,2 milhão), PSL (2,5 milhões), Patriotas (1,5 milhão), PRTB (500 mil) e PSC (300 mil). Entretanto, os resultados partem de patamares bem abaixo do bloco neoliberal e algumas perguntas se impõem: Será com ou sem Bolsonaro? Qual será o programa? Com qual coesão podem se apresentar à sociedade como alternativa?
O capitão sai derrotado do processo. Não conseguiu organizar um novo partido. Dividiu ao meio a sigla que usou em 2018, perdeu o discurso da anti-política e entregou-se à “velha política” ao buscar o centrão fisiológico e corrupto para o governo. Não ganhou as FFAA para impedir os processos judiciais contra os filhos. Cada vez mais evidencia-se sua responsabilidade no genocídio da pandemia que caminha para 200 mil mortes no país.
Entretanto, a política ultraliberal mantida pelo ministro Guedes, a tutoria das FFAA pela conivência da reserva e o silêncio da ativa, a complacência da Justiça e a cumplicidade dosada da mídia são suficientes para mantê-lo com força ou até alternativa caso a classe dominante não construa uma saída melhor.
Moro, o justiceiro, como bom mercenário já foi servir a velhos e novos senhores, usando seu faro para fazer bons negócios pessoais. Mas cuidado, sempre é possível surgir um “incrível Hulk” que apareça como novo salvador, distribuindo casa, fogão e geladeira para todo mundo via TV Globo.
O campo da esquerda, PT, PcdoB e PSOL não conseguiu traduzir as grandes manifestações de 2019 em defesa da legislação trabalhista e previdenciária, da educação e saúde públicas, da resistência democrática e contra o racismo em crescimento eleitoral nesta eleição. O PT manteve sua base de votos de 2016 com pequeno crescimento (6,9 milhões), o PSOL também manteve seus votos (2,2 milhões) e o PcdoB sofreu uma perda acentuada, mantendo 1,2 milhão de votos.
O aspecto positivo foi a recuperação da capacidade de disputa nas capitais e grandes cidades com mais de 200 mil eleitores. Derrotas do PT em Recife e Vitória, do PcdoB em Porto Alegre e a derrota do PSOL em São Paulo, no segundo turno, com patamares de 40% dos votos, retomam espaços já alcançados em vitórias anteriores e reposicionam esses partidos na disputa política.
A vitória do PSOL, em aliança com PT e PcdoB, em Belém, uma das grandes capitais do norte, servirá de reflexão para o comportamento futuro desses partidos, na busca da ação unitária.
Ao disputar em mais 15 grandes cidades, no segundo turno e vencer em quatro delas: Contagem (MG), Juiz de Fora (MG), Diadema (SP) e Mauá (SP), o PT também recupera um espaço importante entre essas cidades-polo ou cidades industriais em regiões metropolitanas onde o efeito demonstração é poderoso. As duas de Minas Gerais são maiores que sete capitais dos Estados menos populosos. Nos municípios com mais de 500 mil eleitores, o PT foi o partido mais votado para os legislativos municipais.
Um balanço deste bloco político sobre o processo eleitoral refletirá, necessariamente, sobre essas experiências e resultados. Não houve um investimento prévio forte, nacional, na constituição de uma frente de esquerda eleitoral em todo o país. Prevaleceram a iniciativa e a situação específica de cada Estado e as relações existentes entre os Partidos e com os setores sociais mais organizados.
Depois de várias alianças, comprovadamente positivas, a avaliação conduz para a necessidade urgente de avançarmos nessa direção. Se não há um entrave, um empecilho de princípios, é imperioso avançar para uma política nacional deste bloco de partidos. Mais do que isso, devemos estender esse diálogo aos partidos que se reivindicam do socialismo (PSB) e do trabalhismo (PDT) para incorporá-los neste debate. Há também, um processo rico de organização de outras forças políticas no campo da esquerda, sem representação parlamentar, mas em implantação e com vida real nos movimentos sociais do país. É dever dos nossos partidos reconhece-los e chamá-los para a construção comum e à luta unificada contra Bolsonaro.
As mudanças na legislação eleitoral e partidária com o fim das coligações proporcionais e com a cláusula de desempenho crescente já em vigor tornam muito difícil a construção e a ocupação de espaços políticos por novos partidos. Nenhum esforço, nenhuma luta, nenhum voto pode ser perdido diante dos conflitos e contradições que temos pela frente.
A leitura dos acontecimentos nestas eleições aponta de forma unívoca para a construção da unidade permanente dessas forças políticas para fazer a luta cotidiana das reivindicações populares e do enfrentamento ao governo genocida, entreguista e explorador de Bolsonaro.
Essa é a principal lição a ser recolhida das eleições municipais. Isolados ou divididos não teremos chances nem capacidade de enfrentamento diante deste governo que sai das urnas mais fraco, mas sem ter sido profundamente derrotado.