De fato, ao invés de “regulamentação excessiva”, a Netflix e outras plataformas de VoD estão sendo muito pouco tributadas, existindo uma grande assimetria entre elas e as TV abertas e pagas, o que fica claro no Quadro Comparativo apresentado a seguir:

Dado o contexto, e as provocações da Ancine e demais participantes da sociedade civil, há vários anos vem sendo discutida no Brasil a regulamentação dos serviços de streaming que alcançariam plataformas como Netflix, Amazon Prime Video, Globoplay, YouTube, HBO Max, Disney +, Apple, dentre outras. O foco principal é garantir que essas empresas contribuam para o desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira por meio de tributos e da promoção de conteúdos nacionais.

Avançaram no Congresso Nacional dois Projetos de Lei que ainda estão em tramitação:

PL 2.331/2022: Já foi aprovado pela CAE do Senado e encontra-se, presentemente, em discussão na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Propõe a cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre o faturamento bruto das plataformas de streaming, como segue:

  • Acima de R$ 96 milhões – 3%
  • Entre R$ 4,8 milhões e R$ 96 milhões – 1,5%
  • Menor que R$ 4,8 milhões – 0%

Está previsto que tal cobrança poderá ser reduzida pela metade quando pelo menos 50% do catálogo for de conteúdo nacional.

Além disso, estabelece cotas mínimas de conteúdo nacional nos catálogos, variando de 100 a 300 títulos, dependendo do tamanho do catálogo da plataforma. Também prevê incentivos fiscais para empresas que investirem diretamente em produções brasileiras independentes.

O PL 8.889/2017 Prevê a cobrança de Condecine de até 6% sobre o faturamento bruto das plataformas de streaming e exige que pelo menos 10% do conteúdo disponível nelas seja de produção nacional, incluindo obras independentes. O projeto também propõe que 30% dos recursos arrecadados de Condecine sejam destinados a produtoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, visando descentralizar os investimentos no setor audiovisual.

Nos dois projetos, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) seria responsável por fiscalizar o cumprimento das cotas de conteúdo nacional.

Ambas as propostas enfrentam resistência de setores da oposição – já que, segundo eles, existiriam privilégios à Rede Globo, do Conselho Superior de Cinema – que quer uma taxação mais alta, em torno dos 12%, de roteiristas – que acusam as plataformas de condições degradantes de trabalho (desrespeito a direitos autorais, cargas horárias abusivas, etc.), de cineastas – contrários à leniência com recursos públicos arrecadados que podem ser utilizados para novos Originais em detrimento de sua aplicação na Produção Independente, e de algumas das plataformas – que fazem jogo de cena e argumentam que a regulamentação poderia dificultar o crescimento do mercado e impactar negativamente os produtores independentes.

Enquanto isso, plataformas como a Netflix têm buscado se aproximar do governo e da sociedade civil, investindo em projetos culturais, como a reforma da Cinemateca Brasileira, utilizando recursos da Lei Rouanet, o que não parece ser nada republicano.

Também entrou em cena a Associação STRIMA composta por Disney +, Globoplay, Max, Netflix e Prime Vídeo, cujas ações são claramente voltadas para o exercício de lobby em favor das plataformas. Insistem na redução da alíquota do Condecine em até 60/70% no caso de atingimento da meta de apoio às obras brasileiras, dentre outras pretensões. São ações de lobby para influenciar favoravelmente as discussões sobre a regulamentação em favor das plataformas. Encenam divergências, mas, no fundo, as plataformas estão bem satisfeitas com o Projeto de Lei e fazendo lobby para a Lei ser promulgada o mais rápido possível.

Estudos de assessorias legislativas do Senado apontam que com o crescimento das plataformas de VoD entre o público da TV aberta e fechada, o setor não pode continuar sem um marco regulatório que imponha obrigações de cumprimento e que possa assegurar os direitos dos usuários. Enquanto as TVs paga e aberta pagam impostos, têm a obrigação de manter uma cota de tela mínima para conteúdo nacional e a obrigação de investimento em obras brasileiras, o VoD não tem tais obrigações; daí tais medidas estarem presentes nos PLs 2.331/2022 e 8.889/2017.

No início de abril de 2025, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou seu parecer sobre o PL nº 2.331/22, do qual é relatora, e mudou alguns parâmetros que haviam sido acordados em 2023 quando a pauta, ainda no âmbito do Senado, estava com o senador Eduardo Gomes. O projeto sofreu mudanças com o aumento do tributo Condecine de 3% para 6% além da fixação de uma cota de tela relevante (10%) que pode chegar a 700 obras brasileiras para serviços de streaming com 7 mil ou mais obras em catálogo. No projeto, a relatora deixa claro que a regulamentação se aplica unicamente aos provedores de serviço de acesso condicionado, contemplados pela Lei do SeAC, não abrangendo provedores de TV e programadoras (regulamentadas pela Lei da TV paga), embora a maioria das plataformas já se encaixe nessa modalidade. Observa-se que a regulamentação das plataformas demorou muito e, nesse ínterim, houve grandes mudanças nesse setor. Assim, continuar enquadrando as plataformas de streaming como SeAC não seria mais adequado. Se isso for verdade, estaríamos regulamentando uma indústria que existia no passado, mas que se transformou rapidamente e não existe mais da forma como existia.

Pelo entendimento da Ancine, as plataformas de streaming não podem ser reguladas na lei da TV paga por não existir um serviço de acesso condicionado, ou seja, não precisam estar ligadas a empacotadoras e sinais de recepção (antena) para proverem conteúdo. Acontece que a realidade atual não é bem assim. Hoje, um usuário de TV a cabo que não esteja satisfeito com o serviço, e que queira ampliá-lo, pode migrar para pacotes como CLARO TV+ e SKY+ que já oferecem Netflix, Max, Disney, etc., o que caracteriza um novo tipo de mercado, conhecido como TV 3.0, que oferece acesso à TV aberta, TV fechada e plataformas de streaming, todas juntas, num único lugar. Isso mostra que as plataformas estão cada vez mais dependentes da estrutura das operadoras para funcionar.

Segundo Marina Rodrigues, produtora, consultora de audiovisual e especialista no setor, estamos caminhando na direção errada. Isso porque a legislação em votação na Câmara se aplica sobre “Provedor de plataforma de compartilhamento” sendo excluídos os provedores de TV e programadoras, que hoje são maioria. O problema é que a regulamentação das plataformas demorou tanto que foi desatualizada pelo dinamismo do mercado. Hoje, existem até ofertas de jogos de futebol da Prime Vídeo em parceria com a Premiere e programação ao vivo na Globoplay, na Max e no próprio Prime Vídeo. Houve uma simbiose entre VoD (provedores de serviço compartilhado) – antes um mero outsider do mercado – e as TVs abertas. A transformação das TVs passa pela oferta do conteúdo online. Por isso, é certo que as definições primárias da TV 3.0 já se assemelham bastante ao que temos na Lei do SeAC, sendo um erro pensar na regulamentação do streaming no Brasil como uma legislação à parte e não como parte integral de um marco regulatório de mídia.

Note-se que a legislação europeia, na qual nos espelhamos, não regulamenta as plataformas de streaming com uma lei à parte já que, lá, elas fazem parte do marco regulatório de mídia de todos os países, prevendo regras claras para TV aberta, TV a cabo, plataformas e afins.

Segundo a Newsletter do Simplificando Cinema, a regulamentação ora em curso é frouxa e desatualizada no nascedouro, mas é melhor que nada. No entanto, deve-se insistir com Ancine e Anatel para que elas trabalhem juntas e com a velocidade requerida na modificação da Lei de TV Paga que abarcará também o streaming, já que a convergência dos setores continuará se solidificando e o Brasil seguramente terá uma lei nova totalmente obsoleta em apenas cinco anos. As plataformas já deixaram de ser apenas de compartilhamento. Elas são, de fato, TV online e seguirão sendo, por força da nova realidade da antena da TV 3.0, cujos primeiros protótipos já foram apresentados no NAB Show, em Las Vegas, EUA.

A expectativa é que, nos próximos meses, o Congresso avance na consolidação dessas propostas, estabelecendo um marco regulatório que promova uma tributação mais adequada para o setor e valorize um pouco mais a cultura brasileira.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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