Antes da resenha
A resenha de Leonardo Padura Fuentes “Como poeira ao vento” não contém spoiler! Também não contém glúten e é de fácil digestão… Não sou crítico literário, muito menos formado em literatura; sou apenas um leitor contumaz (desde sempre, e não apenas na pandemia), especialmente interessado em literatura latino-americana (o que inclui a brasileira, claro) e africana, buscando, além dos conteúdos em si, formas e ritmos inovadores da linguagem.
Como Poeira ao Vento
Dito isto, vamos ao que interessa. Terminei de ler neste início de 2022,- e comemorando o final do triste ano de 2021 – este, que é o livro recém lançado pelo Padura, em novembro passado, pela Editora Boitempo, com tradução de Monica Stahel. Trata-se de um romance, assumidamente como tal pelo autor, nas páginas finais de créditos e agradecimentos.
De fato, na maioria de seus livros anteriores, a construção da narrativa e amarração da história se dava a partir de personagens ou eventos reais e conhecidos (O Homem que Amava os Cachorros); Paisagem de Outono, O Romance da Minha Vida, por exemplo, ou mesmo Hereges) sobre cujas trajetórias era construída uma trama com personagens secundários e davam voz ao olhar e às críticas históricas, sociais e políticas do autor; ou, no caso dos romances policiais, onde um personagem fictício (o detetive Conde) percorria os meandros, as paisagens e os submundos cubanos, apresentando personagens representativos desses cenários (A transparência do Tempo, Ventos de Quaresma ou a tetralogia As Quatro Estações …) e, da mesma forma, davam voz a seu olhar discretamente crítico ao cenário do país e ao regime. Que fique claro que, desde sempre, seus livros foram críticos ao regime, às repressões e limitações ao livre pensamento, à repressão aos homossexuais e à burocracia estatal como forma de controle individual e coletivo, porém sem levantar bandeiras, e também sem perder o mesmo olhar crítico em cenas que se passavam em outros países e em outros contextos históricos.
Em Como Poeira ao Vento, não há protagonista e sim um conjunto de protagonistas. Os personagens são um pequeno grupo de amigos, jovens cubanos comuns, que crescem com a perspectiva da construção do novo país, nos anos 70 e 80, se tornam estudantes e depois profissionais, e veem suas expectativas frustradas pelas sucessivas crises, acirradas pela queda do Muro de Berlim e desmantelamento da União Soviética, que dava guarita ao regime cubano em contraposição ao embargo econômico americano. A trama das relações de amizade, amores e disputas neste pequeno grupo enuncia um microcosmo dos desafios e tensões vividas e enfrentadas por toda uma geração, da qual grande parte busca as várias formas de emigrar, de fugir da ilha, para destinos e em condições variadas. A partir daí, com idas e vindas temporais, e a partir dos encontros e desencontros desses personagens, Padura constrói o romance, em sua forma. Como filme, poderia remeter a “Les uns et les Autres”, de Claude Lelouch (no Brasil chamado Retratos da Vida, de 1981, não pela profundidade de reflexão, mas pelos encontros e desencontros de grupos de pessoas ao longo de algumas décadas, com guerras, migração, e novas gerações surgindo.
Porém, em conteúdo, permanece presente, ao longo de todo o livro, a questão do pertencimento/despertencimento, a tensão da busca de uma nova identidade em outra cultura desprendendo-se dos passados de cada um, ou a sobrevivência em outro meio cultural e o constante saudosismo do que deixou para trás, na ilha e nas suas experiências pregressas. Em suma: O Banzo do Migrante, tema brilhantemente abordado por Leda Rebello, em seus aspectos psicossomáticos e de saúde pública.
O tema do pertencimento e despertencimento ou desenraizamento, ou exílio (forçado ou não), é uma constante nos textos, livros e entrevistas de Leonardo Padura. Durante sua vinda à FLIP – Feira Literária de Paraty, em 2015 ele reclamou que seus entrevistadores se interessam mais pela situação de seu país do que por sua literatura e que sempre lhe indagavam porque ele, como escritor famoso internacionalmente, seguia vivendo em Cuba, apesar de sempre crítico ao regime. Ali ele se define como, e é, um escritor cubano, que escreve sobre Cuba, a partir de Cuba, onde estão suas raízes (ele segue vivendo na casa construída por seu pai na década de 30), sua história, é de lá que ele observa e sofre com as mudanças e retrocessos e cria sua literatura. Não poderia fazê-lo fora dali.
Em Água por Todos os Lados ele reitera: “Sou um escritor cubano que vive e escreve em Cuba porque não posso e não quero ser outra coisa, porque (e sempre posso dizer que apesar dos mais diversos pesares) preciso de Cuba para viver e escrever”. Nesse livro, ao aprofundar a análise de seus processos de trabalho, fazendo o “making-off” de alguns de seus livros, e acrescentando alguns artigos e entrevistas, ele racionaliza, descreve e aprofunda a abordagem e emoção em relação a seu próprio sentido de pertencimento, de suas relações com os vizinhos, a rua, o bairro, a cidade, a ilha, a cultura, a história.
Já em Como Poeira ao Vento, a abordagem é outra, não há análise e racionalização do autor sobre o pertencimento, mas ele está permanentemente presente nas falas, angústias e diálogos dos seus personagens, dentro ou fora da ilha, mesmo quando não utilizam esse termo específico. E justamente aí está a universalidade da obra de Leonardo Padura, mesmo sendo um “escritor cubano”, o mundo sempre apresentou fluxos migratórios por pressões de todos os tipos: guerra, fome, miséria, perseguição política, escolha de melhores oportunidades e futuros, ou somente aventuras e miragens de refazer a vida em outras paragens. E o mundo globalizado traz números estonteantes quanto a esses fluxos. No Brasil de hoje, quantos jovens estudantes e profissionais, desvalorizados por aqui, estão buscando novas oportunidades em outros países, enfrentando os desafios da adaptação, alguns preconceitos e a distância de suas raízes? E, mesmo considerando as facilidades que as novas tecnologias de comunicação trazem, para contato permanente com família e amigos, qual a força e o significado dos sentimentos de pertencimento e despertencimento na trajetória de cada indivíduo?
Em suma, em Como Poeira ao Vento, Padura trata de Cuba, com seu olhar crítico e irônico, pela boca de seus personagens ou do narrador, entretanto mantém o mesmo olhar crítico e irônico ao tratar de Espanha, da Flórida, do “country” americano ou de Porto Rico. É impressionante sua capacidade descritiva de locais nos quais nunca esteve ou vivenciou, como Chico Buarque, em Budapest. Local e universal, como devem ser os bons escritores. Uma leitura envolvente, leve, emocionante, e politicamente profunda, para quem quiser ler sem esperar rompantes de discursos maniqueístas. (Rio, 01/01/2022)
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Ilustração: Mihai Cauli
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