Responsabilidade fiscal e federativa na enfermaria
Mapear e debater a vedação para que nunca mais se repita. Se o Brasil precisa de um recomeço, em muitas áreas públicas, no campo das finanças tem uma oportunidade ímpar de ver tudo que se fez nos últimos meses e discutir e quem sabe tomar medidas eficazes para que nunca mais se repitam.
Ainda mais que muitos dos atuais eleitos sofreram flagrantes abusos de autoridade de seus adversários e então donos da máquina pública, poderiam assumir o compromisso de não repetir o mesmo quando chegar ao final de seus governos. Mais do que cartas ou promessas, é premente revisar instituições, políticas e práticas porque, inegavelmente, ou se revelaram frágeis, ou não estavam preparadas lidar com os novos fatos, sobretudo os que surgiram com a digitalização, não só da economia, como também do governo e da política. São precisos novos marcos, nortes, vedações e, se o caso, punições.
Os desafios que marcam as finanças públicas, da tributação ao orçamento, passando pela dívida pública, e ainda mais quando a nação se organiza em torno de uma federação são imensos e, por mais que precisem ser atualizados, não podem ser apequenados como um TikTok. É contra ou a favor do controle do gasto? Ou da dívida? Ou da receita? Vai continuar a dançar é o país que apostar em lidar com contas e coisas públicas com tal grau de simploriedade. Já se pagou até aqui um preço muito alto ao abandonar uma tradição secular de bons fundamentos e sistemas, como trazidos pelo Código de Contabilidade Pública de 1922, a Lei Geral de Finanças de 1964 e a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000.
Ao lado da ridícula e inútil simplificação de regras fiscais, se toma a prática recorrente de constitucionalizar as matérias fiscais e tributárias, na ânsia de impor e assegurar a vontade da maioria de plantão. Não há outro Estado no mundo hoje em que se aprove tantas mudanças constitucionais, tão pormenorizadas e tão conjunturais. Escritas e votadas às pressas, como se fossem postagem de redes sociais, muitas vezes ensejando dúvidas, quando não contradições e incoerências com outras normas da mesma Constituição, resulta que a maioria das matérias se torne passível de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal – e, ironicamente, este, depois, é acusado de ativismo.
Se o desrespeito ao bom senso e à democracia virou a regra, que dizer de se preocupar com a responsabilidade fiscal e federativa. O ano registrou a aprovação, em Brasília, de uma sucessão de leis ou medidas que, quase ao mesmo tempo, tanto reduziam ou limitaram as receitas dos governos estaduais e municipais, quanto impunham aumento de gastos para tais governos.
Do lado tributário, o caso mais conhecido relaciona-se às leis e decisões judiciais, ambas nacionais, que mudaram a forma e reduziram a incidência do imposto estadual (ICMS) sobre combustíveis, bem assim sobre energia e comunicações, para controlar a inflação e sob o pretexto de que os governos estaduais já teriam tido ganhos extraordinários com essas bases tributárias. A própria Receita Federal publica que os combustíveis explicam a maior parte do seu aumento de arrecadação este ano, porém, advindo da tributação dos seus lucros, sem contar que boa parte deste foram recolhidos ao próprio Tesouro Nacional, diretamente pelos dividendos da Petrobras ou indiretamente ao descapitalizar a BNDESPAR. A energia elétrica segue um roteiro não muito diferente. E, no caso das comunicações, a própria agência reguladora confessou que menos impostos não foram repassados para preços.
Do lado do gasto, é preciso chamar a atenção para a adoção de piso de enfermagem, que impacta as contas especialmente dos governos estaduais e municipais, que detêm a quase totalidade da rede pública de saúde nacional, sem contar que a outra parte do SUS se baseia em Santas Casas e outros hospitais privados. Só os municípios estimaram um impacto de um aumento de gasto em R$ 15 bilhões ao ano.
O esforço de estimativa realizado pelo Congresso e pela IFI mostra números inferiores para o gasto municipal. No entanto, há que se compreender que a dinâmica do sistema, alicerçada em relações contratuais com unidades privadas e filantrópicas, implica que o gestor municipal seja o garantidor final dos recursos de expansão de despesas pela implementação do piso nas unidades prestadoras de serviços. A Tabela 1 mostra a previsão de gastos anuais com a implementação da medida. Vale notar que parcela dos R$ 11,8 bilhões que serão pagos por unidades privadas e filantrópicas gerarão, de fato, uma conta a ser paga pelos gestores estaduais e municipais.
Ao mesmo tempo, a questão federativa nem é notada. Vale observar o Gráfico 1, que mostra que, em cada Estado, o efeito da implementação do piso para enferemeiros é extremamente diferenciado, podendo significar de 10% a 131% de expansão dos salários estaduais. No caso dos técnicos em enfermagem, a expansão salarial representa dispersão mais reduzida, variando de 36 a 60%. Promover ajustes tão profundos e diferenciados com uma canetada é o caminho da desorganização do sistema de saúde.
Fonte: elaborado a partir de www.salario.com.br/profissao/enfermeiro-cbo-223505.
Curiosamente, se um estado ou prefeitura for criar um gasto novo e permanente, como nesse caso da enfermagem, é obrigado a cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige que tal medida seja quantificada e, sobretudo, seja compensada financeiramente – ou por aumento permanente de receita, ou por corte duradouro de gasto. Mas se uma emenda constitucional ou outra medida, legal ou administrativa, lhe impõe um impacto de tal ordem, aquele princípio é ignorado.
Para piorar a situação, a medida tem impactos sistêmicos sobre a saúde. Toda a rede ambulatorial e hospitalar voltado para o mercado privado será submetida a uma elevação de custos na área de enfermagem. Há três vias para o equacionamento deste custo adicional: a) demissão de trabalhadores atuais, com impacto na qualidade e oferta de serviços; b) compressão de margens de lucro das unidades de saúde, numa situação já muito difícil, dada a pandemia; e c) repasse dos custos aos planos de saúde, com elevação do valor aos segurados.
Nos três casos, o impacto sobre o SUS é inevitável, sendo que no terceiro caso há um fator de desorganização de potencial disruptivo para o sistema de saúde. Aumentos de custo num sistema que teve reajustes muito superiores à inflação, em 2021, podem resultar em inadimplência e abandono pelo segurado. Planos com perda importante de clientela tendem a limitar coberturas ou mesmo à quebra. Logicamente, estados e municípios, já pressionados pelos aumentos de gasto para cumprimento do piso de seus servidores e Organizações Sociais, por eles contratadas, precisarão lidar com crescimento da demanda, referente a atendimentos atualmente realizados ao amparo do sistema suplementar (planos e seguros de saúde).
O mais estranho é que o mesmo Congresso chegou a aprovar, em 14/7/2022, uma proposta de emenda constitucional, n. 122, de 2015, proibindo a União de criar despesas aos demais entes federativos sem prever transferências de recursos para seu custeio. Mas a proposta nunca foi promulgada – mesmo já tendo outras emendas posteriores sido aprovadas e promulgadas.
À parte a inegável discricionariedade e sem prejuízo de reconhecer que enfermeiros poderiam ser melhor remunerados, como várias outras profissões, é preciso atentar melhor aos efeitos dessa medida, que tende a resultar em imensa injustiça social, prejudicando os cidadãos mais pobres e dependentes da rede pública, com maiores danos no interior e nas regiões menos desenvolvidas.
Enfim, a campanha eleitoral de 2022, no Brasil, produziu um roteiro perfeito e completo de tudo que, na ânsia de a ganhar, se deveria evitar para não desarranjar as contas públicas e para desequilibrar as finanças de uma federação. É legítima disputa política, inclusive no caso da reeleição, agora é amoral e tem que ser também ilegal o fazer a conta dos outros, sejam futuros governantes, sejam outros governos.
E vale lembrar que a análise de política fiscal não é apenas uma avaliação de receitas, despesas e déficits. Ao contrário, o analista está verificando a consistência das medidas e a solidez institucional. O que importa é reconstruir esta credibilidade, que já existiu e foi perdida na ânsia da disputa pelo poder. (Publicado originalmente no site de José Roberto Afonso em 14.11.2022 e pela Revista Conjuntura Econômica – FGV/nov/2022).
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler o artigo “Calma!” de Cesar Locatelli.