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Jean-Nicholas Arthur Rimbaud nasce em 20 de setembro de 1854, em Charleville, no Norte da França e perto da fronteira belga. Morre há exatos 134 outonos, em 10 de novembro de 1891, em Marselha, no Sul da França. Na escola, é tido por um verdadeiro prodígio nas línguas clássicas. Desenvolve rimas em latim e ganha menções ao mérito. Escreve poesias precocemente, o bastante para ser o precursor do simbolismo. Com recursos particulares, publica Une Saison en Enfer (“Uma Estação no Inferno”). A edição é retida por falta de pagamento, e não vende sequer um exemplar.
Passa por uma tremenda crise que o leva à beira da loucura. Tem um curto relacionamento com um colega do círculo das musas, Paul Verlaine, que acaba na delegacia. A partir daí, faz da vida o evento literário e incorpora os modos dos les enfants terribles. A singularidade é sua bênção e sua maldição.
Abandona a ideia de escritor e suspende a óbvia vocação, sem explicação. Então anuncia que será explorador em terras distantes, na idade adulta. Mas a unidade entre sua vida e arte é tão intensa que, mesmo sem o testemunho da escrita, será um incansável desbravador das paragens inauditas e misteriosas nos febris desertos da sensibilidade, longe de qualquer oásis consolador. As criações na adolescência se mantêm ad eternum como a síntese da rebeldia imortal para gerações vindouras.
Em março de 1871, eclode a Comuna de Paris em uma grandiosa insurreição popular. O governo é deposto. Rimbaud engrossa as fileiras dos communards. “A ordem está vencida! A burguesia egoísta e clerical foi vencida!”. Estagia na caserna de Babylone e avança no “Projeto de uma Constituição Comunalista”, que se perde. Decepciona-se com o clima “festivo” e as bebedeiras dos soldados. Na época, pensa a poésie como uma ponte ao progresso. Busca esgotar em si o amor e a loucura pelo “desregramento de todos os sentidos” para apreender a quintessência do “Insabido”, na arena da alma.
Em fins de maio, a revolução é esmagada. Anota um poema revolucionário sobre a derrota da utopia, Orgie Parisienne (“Orgia Parisiense”): “- Sociedade, está tudo em ordem: – as orgias / Estertoram de novo em velhos lupanares: / E, delirante, o gás nos muros encarnados / Arde sinistramente à palidez dos céus!”). A repressão do governo de Versalhes aos insurgentes é violenta. Entre homens, mulheres e crianças vinte mil são executados e dez mil deportados para colônias africanas. Quase quarenta mil vão presos; outros cinquenta mil submetidos a julgamentos e, muitos, a condenações.
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É de sua audaz autoria o poema que inaugura o verso livre na história da literatura moderna, Marine (“Marinha”). Este soa qual música atonal sem a tradicional nota tônica, pois fora de uma concepção linear do tempo e do pulso métrico do relógio. “As carruagens de prata e cobre / As proas de aço e prata / Batem na espuma, / Levantam os tocos de sarças”. Retira-se para Roche, propriedade rural da família, e se tranca no sótão para escrever em uma prosa prometeica uma temporada visionária.
Na fase de explorador, junta recursos para alcançar a “liberdade”. Pretende ter uma velhice digna. Priva-se de café e fumo, contenta-se com duas mudas de roupa. Economiza para se libertar das necessidades materiais. Carrega o pé-de-meia no cinturão com medo de ser roubado. Em 1881, envia carta à mãe: “Se vocês precisam, peguem do que é meu: é de vocês. Por mim, não tenho ninguém para cuidar salvo minha pessoa, que não pede nada”. Se conduz com generosa empatia.
“Áden, em Iêmen, no canto Sudeste da Península Arábica, é uma cratera de um vulcão extinto cheia de areia do mar. Só se vê lava e areia por todos os lados, incapazes de produzir a menor vegetação, cercada pelas dunas do deserto. Aqui as encostas da cratera do nosso vulcão extinto impedem a passagem do ar, e vivemos assados numa espécie de forno de cal”, relata o corajoso jovem. Ignora que na capital francesa seu nome é comentado em saraus como uma fulgurante e bela avis rara.
Rimbaud trabalha à exaustão na África: Harar, Choa hoje Adis-Abeba na Etiópia, e Lárnaca no Chipre. Teme que um regresso à França obrigue-o a cumprir o serviço militar e vá parar na prisão, o que é insuportável. “Morrerei onde me jogar o destino. Espero poder voltar onde estava (Abissínia), lá tenho amigos de dez anos que terão piedade de mim, encontrarei trabalho e viverei como puder”.
Henry Miller no livro-recorte, Rimbaud por ele mesmo, ao entrar em contato com a extraordinária biografia do genial vate e aventureiro, exclama, pasmo, surpreso: “A minha impressão era de nunca ter ouvido falar de uma vida mais desgraçada. Esqueci por completo os meus sofrimentos. Esqueci todas as frustrações e humilhações que tinha sofrido, o desespero e a impotência que tantas vezes me derrubara”. Sempre se acha um outro em piores condições que as nossas no Vale de Lágrimas.
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A segunda metade do século XIX é pródiga em espíritos martirizados, Friedrich Nietzsche, August Strindberg e Fiódor Dostoiévski. Vincent Van Gogh nasce um ano antes de Arthur Rimbaud. Para ambos, a esperança acaba quando deveria recém estar começando. No fim das jornadas, o amigo de Rimbaud é um garoto Harari (Djami), um criado de quem fala ainda com carinho no leito de morte.
Para Van Gogh, cujo laço com Gauguin se encerra às turras, a amizade que o acompanha nas horas lúgubres é a do carteiro Roulin. Por falta de interessados em seu talento, só o irmão Theo se dispõe a comprar uma tela. O pintor pós-impressionista, com passagem por hospícios, dá o suspiro final em 1890. No ano seguinte, Rimbaud comunica a parentes: “Adeus casamento, adeus família, adeus futuro! Minha vida passou. Não sou mais do que um pedaço imóvel”. Poetisa um ocaso próximo.
Rimbaud tem uma perna amputada; câncer nos ossos. O diplomata e poeta Paul Claudel visita-o no hospital, em Marselha: “Um místico em estado selvagem, uma fonte perdida que jorra de um solo saturado. Termina a vida em uma espécie de sonho contínuo. Diz coisas estranhas muito docemente, com uma voz que me encantaria se não me rasgasse o coração. Parece que ele está consciente”. Jaz agora no túmulo branco, virginal, do cemitério de sua cidade natal. Não imaginou o renascimento.
A obra de Rimbaud é traduzida ao hindi, mongol, etc. Adquire modernidade entre beatniks, hippies, punks, críticos do status quo. Em 1905, o busto do filho ilustre de Charleville é inaugurado na Praça da Estação, e retirado na ocupação nazifascista. Em Harrar, encontra-se uma rua com seu nome. Um grupo turístico organiza um “Safári Rimbaud”, onde peregrinou em priscas eras. No golfo de Áden, singra o mar Vermelho o rebocador “Arthur Rimbaud”. O menestrel, apelido “Marujo” no Quartier Latin, aceitaria a distinção marítima; não a bazófia hollywoodiana feita com a pronúncia – Rambo.
O ponto é: o que pensar da sociedade em que illuminati de legados fabulosos à humanidade penam aflições para garantir um sustento diário? Thomas Morus, em Utopia (1516), propunha uma “renda básica universal” como instrumento de combate contra a fome, e a favor da dignidade de todo ser humano. O Brasil possui uma lei aprovada sobre o tema há décadas, conquanto não regulamentada. Assim pobres são jogados na criminalidade e artistas, condenados a leiloar instrumentos musicais em troca do mínimo para tocar adiante a existência na insegurança das águas turvas do capitalismo.
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Saúdo Ivo Barroso – Prêmio Associação Brasileira de Letras (ABL) de tradução – responsável por verter para o português, Poesia completa: edição bilíngue comemorativa do Sesquicentenário, do profeta da juventude entusiasta, rebelde, que prenuncia tempos melhores. No passamento (10/11) de Rimbaud fica uma pequena palhinha de seu poema-“vidente” Le Bateau Ivre (“O Barco Ébrio”):
“Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas, / Ressacas e marés; eu sei do entardecer, / Da Aurora a crepitar como um bando de pombas, / E vi alguma vez o que o homem pensou ver!”
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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