Não por coincidência, o mapa da enchente é o mesmo da região originária
das matas de araucária no Rio Grande do Sul (RS).
As terras que agora desabam dramaticamente no Sul do Brasil, levadas pelas chuvas torrenciais, foram integradas ao sistema capitalista de produção para o mercado internacional há 200 anos. Não por coincidência, o mapa da enchente é o mesmo da região originária das matas de araucária.
A intensa atividade econômica exploratória, conhecida como “política de colonização”, foi iniciada com a vinda da Corte Portuguesa (1808-1821) para o Brasil. Com as novas demandas da monarquia lusitana, associadas aos interesses do capitalismo industrial inglês, houve um avanço no modelo de latifúndio escravizador para as terras altas de florestas, desde São Paulo até o Rio Grande do Sul. Ali existia um magnífico território com águas abundantes, vegetação milenar exuberante e fauna diversificada, que incluía variedade de aves, peixes e mamíferos. Essas terras eram ocupadas, pelo menos há seis mil anos, por populações de origem linguística jê.
A extensa formação do Planalto Meridional, que engloba os três estados do Sul e São Paulo, é um “bloco” geológico de derrame basáltico, onde terras e argilas se fixaram dando vida a uma estupenda floresta subtropical, que finda na escarpa do Rio Grande do Sul. Essa borda do planalto se estende em morros e serras de geomorfologia frágil e instabilidade evidente. Uma região com força natural gigantesca se expressa na vida vegetal ali criada: florestas de pinheiros de araucárias com árvores de acácias, angicos, canelas, canjeranas, cedros, erva-mate, espinilhos, louros, palmeiras, taquaras e umbus – território tradicional de ocupação das famílias de etnia jê. Os originários ficaram conhecidos pelos “colonizadores” como botocudos, bugres, coroados, guainás e guaianases, hoje são chamados de terenas, kaingangs, xoclengues, entre outros.
Historicamente, populações guaranis também desfrutavam da generosa natureza nas partes baixas, nos vales dos rios.
Para beneficiar a nobreza portuguesa, fugitiva das revoluções liberais burguesas da Europa, o príncipe regente governante, dom João VI, declarou guerra aos indígenas botocudos, senhores das matas de araucária. As forças lusitanas trataram de matar os homens das nações nativas e escravizar as mulheres e as crianças, como bem retratou o pintor Jean-Batiste Debret, artista francês exilado no Brasil (1816-1831).
No início, o desmatamento florestal atingiu as terras de São Paulo, para a produção e exportação de café, privilegiando os barões, a nobreza titulada lusitana aportada em terras tropicais. Foi a “independência” do Brasil – articulada pelo herdeiro da coroa portuguesa, dom Pedro I, e sua esposa, dona Leopoldina, a defensora dos interesses da Áustria na América do Sul – que pautou a constituição de um Exército de enfrentamento às forças liberais europeias e ampliou o avanço sobre as milenares florestas de araucárias. As terras dos botocudos foram doadas pelo Império brasileiro aos mercenários europeus, especialmente de origem alemã, como forma de pagamento por serviços militares. Uma política de “colonização” que ocultava a cooptação de profissionais das armas como colonos-soldados, questão apontada por cientistas sociais e historiadores sul-rio-grandenses.
Assim, em 1824, há 200 anos, foi aberto um ciclo de acomodação de agricultores europeus por companhias de colonização estrangeiras. Empresas capitalistas, beneficiadas por terras arranjadas junto à monarquia brasileira, gerenciaram um abate florestal, em escala industrial e ferroviária, sem precedentes. Regiões do interior da América do Sul se internacionalizaram nas mãos do herdeiro Bragança, dom Pedro II, o mais duradouro governante do Brasil (1831 a 1889), que reinou por 58 anos, atendendo a interesses bastante “globalizados‟. Sob o seu comando, a indústria madeireira e o assentamento de mão de obra estrangeira para a produção agrícola e a criação de animais puderam contar com imigrantes de diversas nacionalidades. Entre miseráveis sobreviventes de guerras europeias, deserdados da terra de diferentes regiões do planeta, e os mais ilustrados técnicos a serviço do capital internacional, estavam milhares de alemães, árabes, belgas, espanhóis, franceses, holandeses, ingleses, italianos, japoneses, judeus, luxemburgueses, portugueses, turcos, russos, suíços e sul-americanos. Derrubada a floresta, o produto era exportado pelo porto de Rio Grande, e “colonos‟ eram assentados.
As frágeis regiões dos vales de rios, encosta da serra e terras altas do planalto foram transformadas em campo de cultivo intensivo de grãos e criação de animais, criando a imagem do Rio Grande do Sul como o “celeiro do Brasil”, com produção de alimentos para o mercado externo. O projeto ferroviário, de capital inglês, precedido pelos norte-americanos, rasgou a região na Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande. Carregando toras de cedros e pinheiros, os trens levariam também os alimentos e o tabaco. A construção dessa incrível malha ferroviária provocou grande devastação ambiental em toda a região do Planalto Meridional. Mas não sem resistência. A Guerra do Contestado (1912-1916), com mais de 10 mil mortos, é um exemplo da resistência dos nativos da terra à grande espoliação das terras florestais.
No início do século XX, as lavouras “coloniais‟ do Rio Grande do Sul já contribuíam de forma determinante com erva-mate, grãos, tabaco, couros e carnes para as guerras europeias. Em 1938, na região de Soledade e Sobradinho, do grande rio Jacuí, agricultores se rebelaram contra a exploração capitalista internacional existente na região. O movimento ficou conhecido como os Monges Barbudos, destacando o aspecto religioso e ocultando os fatores econômicos e políticos do conflito. A superexploração dos pequenos proprietários de terras “coloniais” envolvidos com a produção para a sustentação das nações europeias em conflito, motivado pela crise capitalista e pela ascensão do nazi-fascismo, foi denunciada pelos camponeses e indígenas – guaranis e kaingangs – como causadora de injustiças sociais e devastação ambiental. A denúncia do desastre que se seguiria foi vista como messianismo: um velho monge dizia que tudo iria acabar. João Maria avisou. Não se pode descartar que a recorrentemente lembrada enchente de 1941 já tenha sido uma consequência da rápida e radical mudança da paisagem dessa grande região.
Com os novos arranjos internacionais no pós-Segunda Guerra Mundial, o Rio Grande do Sul foi sendo reorientado para a produção de soja, visando o mercado asiático, substituindo a produção norte-americana. Uma cultura intensiva, com o uso de tecnologia mecanizada, hoje informatizada, produtos químicos sem controle, reduzida mão de obra, foi monopolizando a produção para a exportação. Lavouras gigantescas em latifúndios sem medida, financiados com recursos públicos anuais, acabaram por matar a diversidade biológica e degradar os solos de forma irremediável. Transgênicos, pesticidas proibidos nos locais de origem, ocupação de áreas ribeirinhas, eliminação de quase 100% da floresta originária, deixam seu legado de destruição e mortes. Existem responsáveis por essa tragédia anunciada.
Denúncias de ambientalistas, pesquisadores e cientistas locais [1] não foram consideradas pelo ciclo de poder vigente no estado e em prefeituras. A Região Metropolitana de Porto Alegre acolhe cinco grandes rios interiores do território sul-rio-grandense. O lago Guaíba reúne as águas e também a lama e os dejetos: tudo que foi carregado pela enchente chegará ao grande lago de sedimentação que é o Guaíba. Nossa tragédia não se resume às águas da chuva que transbordam, os rios estão sendo mortos pelo assoreamento. São terras desabadas que não voltam mais.
Medidas urgentes precisam ser tomadas, especialmente nesse momento em que, tradicionalmente, os capitais internacionais se deslocam, deixando o passivo de destruição para as populações locais. Mas, não se trata das “medidas emergenciais” tradicionais nas mãos de autoridades corruptas, despreparadas e gananciosas. O neoliberalismo, associado ao neofascismo, já deixou sua marca em definitivo neste solo. A contraposição ao projeto excludente e nefasto é a democracia participativa. As populações precisam ser chamadas para o debate público. A instrução sobre a fragilidade da região que habitamos deve fazer parte da proposta de recomposição ambiental.
Atitudes duras de enfrentamento à mineração de carvão, areia e rochas e ao grande latifúndio da soja, do arroz e do tabaco são necessárias. O momento exige reparação, por parte daqueles que lucram com a devastação, e apontamento das autoridades públicas negligentes. O comprometimento com a recuperação da degradação ambiental causada deve ser ponto de honra para as populações sul-rio-grandenses. Quem causou a tragédia que pague por ela. Os capitais que devastam regiões periféricas coloniais são monopolistas e estão nas mãos das mesmas famílias há centenas de anos.
Por outro lado, é vital que seja retomado o interesse social da propriedade da terra para efetivação de ações de longo prazo, com reforma agrária, para que a cidadania comprometida com o futuro possa recuperar as margens dos rios e riachos, promovendo cultivos regenerativos. É premente “renacionalizar” a produção agrícola e a propriedade da terra no Sul do Brasil. O Brasil é vanguarda na tecnologia agroflorestal sustentável. A hora é de solidariedade, responsabilização, reparação e participação popular na definição de medidas presentes para a esperança futura. (Publicado no Sul 21, 06/05/2024)
Nota:
[1] MENEGAT, Rualdo, coord. Atlas Ambiental de Porto Alegre (1998), UFRGS/PMPOA/INPE. A publicação apresenta em detalhes a pesquisa sobre o território sulino realizada em décadas de estudos acadêmicos e do poder público municipal.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “No RS, a tragédia é natural, social e ambiental“, de Gerson Almeida.