Num filme de arte, as fagulhas do inconsciente parecem atravessar a tela e descerrar acessos.

Quando “O Brutalista” foi lançado, fiquei curiosa com o nome do filme. Nunca tinha ouvido a palavra. Ler uma nova palavra convoca associações. Na rápida pesquisa, encontrei informações sobre o brutalismo como movimento da arquitetura pós-Segunda Guerra, que deriva da palavra francesa “Brut”, que significa “cru” ou “bruto”. Pela sonoridade, associei também à “Art Brut”, expressão cunhada para designar a arte de criadores livres como internos de hospitais psiquiátricos.

Depois de assistir a longa película, num lampejo, pensei também no impressionismo. Num filme de arte, as fagulhas do inconsciente parecem atravessar a tela e descerrar acessos. No filme sobre a saga do arquiteto László Tóth pela sobrevivência física e psíquica, a arquitetura parece ser o revestimento que amalgama os personagens a outros personagens, como também a seu próprio exílio, seja interior ou exterior. Dentro e fora, a trama vai se desenrolando ora rapidamente, ora devagar. O que sobreviveu de László, Erzsébet e Zsófia, que passaram pela experiência de conviver com os escombros da guerra num campo de concentração: a morte, a extinção da família, a fome e a devastação? Como atravessar esta experiência trágica e poder resgatar algum fio para continuar a tecer e inventar a vida?

O que enlaça e lança a trama dos sobreviventes? Há um fio que os enreda a partir da cena de abertura. Se, de um lado do oceano, Zsófia, emudecida pelo trauma num campo de concentração, sentada atrás de uma janela com um bosque branco de inverno, é interrogada imperativamente pela voz de um soldado nazista, a chegada de László Tóth se infiltra na tela como numa troca de transparência ou o fragmento de um sonho: escura, corpos em movimento com vozes diversas e esparsas. Claro e Escuro se sobrepõem e se opõem. Uma porta se abre e a Estátua da Liberdade desfocada eclode na tela com a trilha sonora de Daniel Blumberg. Na voz de Erzsébet, a narrativa os enlaça com a leitura de uma carta que contém um precioso recorte da frase de Goethe que opera como um enigma a ser decifrado: “(…) é mais escravo (…) aquele que se julga livre (…)”.

O filme é longo e lento, tecido com dor e beleza. Desdobra cronologicamente a saga de László Tóth, arquiteto húngaro formado pela Bauhaus, que sobreviveu ao campo de concentração Buchenwald.

A partir do seu desembarque na América, a câmera aproxima, distancia e recorta os contrastes e conflitos do personagem. Revela-o em subtração e excesso; contenção e expansão; cheio e vazio, como o movimento da respiração. Tudo e nada, claro e escuro, silêncio e ruído. Opostos.

A cartografia do personagem é sutilmente trabalhada em detalhes que às vezes o funde com as cores da paisagem. O corpo parece desabitado, à procura dos seus pares, sua língua, sua pátria. László perambula pela fila do pão e com as mãos talha objetos. A heroína parece ser refúgio que o mantém em pé, aos tropeços.

O filme tem aberturas e fechamentos, deslocamentos e condensações. Atravessamentos e impedimentos. Da travessia do continente de navio à passagem pela ponte de madeira coberta de treliça em arco quase medieval, a câmera acompanha a vagarosidade do trajeto e se podem escutar os ruídos da madeira como o ranger dos dentes. A travessia pede cautela. O que irá encontrar do outro lado da ponte?

Uma coluna de madeira retorcida baliza o diálogo de László e Harrison, que esbarram na grafia de seus princípios. O que surge desta aproximação? Depois do projeto da biblioteca com traços modernistas, Harrison convida László para o projeto da construção de um grande monumento que servirá a várias funções. Como dar forma a um projeto sem definição clara? O arquiteto é pego de surpresa. E, de fato, é pego como uma presa, com o convite de poder criar sem restrições. O tempo da criação parece abrir uma fresta que ilumina e colore a tela. Acompanhamos uma centelha da vida pregressa de László, que se desata quando de bicicleta, lépido atravessa a ponte de madeira rumo à colina, lugar da encomenda, onde desenha, esboça, demarca o território para sua criação. O corpo parece sobressaltado de desejo.

Nesse alvoroço, criação e invenção tomam a cena. As linhas rabiscam em busca de proporções. Quais faíscas atravessaram sua percepção, dominaram suas mãos no esboço de um monumento sem definição? Terá traços de um campo de concentração?

Quando os rabiscos davam contorno a uma maquete, Erzsébet e Zsófia desembarcam, trazendo no corpo os estilhaços do trauma.

Ao sair do papel, o território inventivo e alvoroçado escurece e esbarra em impedimentos. Da luz à sombra. O projeto esboçado tem que ceder. Orçamento, função, proporção, contraem a criação. A aproximação de László e Harrison se dilata em luta fálica. Concreto e aço se emaranham ao corpo dos personagens. Fora e dentro. Corpo e obra. Atravessado por obstáculos, László trava uma luta onde se depara com as sobras de quem foi, que se funde com uma encomenda que não é clara, feita por quem só quer, sem saber o quê. Saber e não saber entram em jogo. Erzsébet debruçada sobre os esboços no papel dá borda ao dizer “estou olhando para você”. László se perde nas ruínas do inconsciente. “O que foi roubado de você?” Se enrosca no emaranhado do poder e submissão, senhor e escravo, brutalista e capitalista. A imagem esfumaçada esconde o trem com carga pesada demais que descarrilha e explode. Há algo que não se sustenta. Harrison não sabe o que fazer quando o trem sai do trilho.

Com o projeto suspenso, László, Erzsébet e Zsófia assentam vida em outro lugar. Desenham novo curso. Zsófia recupera a voz, grávida, quer voltar à sua terra, Erzsébet quer ir junto, pois desconfia do convite feito a László para finalizar um detalhe sutil da obra: o altar não pode ser de um mármore qualquer. O que retorna? Harrison e László, enlaçados por um detalhe invisível, seguem para as escavações em Carrara na Itália, em busca do precioso mármore translúcido com veios sutis que permite a passagem parcial da luz. Na labiríntica estrutura de aço e concreto, uma cruz será projetada no altar pela incidência do sol ao meio dia na estrutura chanfrada em um cubo translúcido. Sutil detalhe. Os panos caem quando a grafia dissonante de Harrison rompe em ato no corpo de László. Palavras são arrancadas das entranhas por não suportar não saber o que quer de alguém que parece não ter nada a oferecer. Diante da escavação rochosa, László se depara com seus restos no abismo e na altura de seus olhos, o bruto recorte de uma tumba aberta e vazia. Ruídos no corpo de morte e vida. Som e silêncio.

O brutalista se enlaça ao impressionista quando diante a uma imensa janela, a luz do amanhecer dissolve László na cena como tinta da paleta de Claude Monet ao pintar a obra “Impressão: nascer do sol”, nome que inaugura o movimento.

Será o destino mais importante do que a jornada? (Publicado por Sul 21)

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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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