Era uma vez, democracia.
Sempre jovem
Porque sempre interrompida.
Seus filhos, quando crescem,
Escarram em seu rosto
De tempos em tempos.
E mudam os tempos.
E mudam as vidas.
E emudecem os que querem viver.
E amedalhecem os que fazem morrer.
Matam por saudades
Dos tempos que eram bons
Porque neles não viveram.
E é por haver mortes naqueles tempos,
Que desgostosos da vida os desejam agora.
E não desejam democracia.
Porque ela é mãe de muitos filhos.
De irmãos que não se querem.
Do branco que não quer a filha com o preto.
Do macho que quer o filho macho.
E tem que dar porrada pra virar macho!
Da carola que não quer o mendigo fedorento na esquina.
E que tem medo do menino preto que corre.
Do refinado que não quer pobre por perto.
Pra aeroporto não virar rodoviária.
E o restaurante chique não virar laje.
Do herdeiro meritoso que não quer pobre na universidade,
Pra não ter que chamar de doutor
O que acredita nascido pra garçom.
E ninguém quer conversa.
Porque conversar é ouvir depois de falar.
Mas todo mundo quer falar.
E quer ganhar joinha por isso.
E pra mudar o outro, não se quer convencer.
Nem conhecer pra se pôr no lugar.
Quer vencer
Pela força, mentira ou injúria.
Querem uma pátria.
Forte, rica e pujante.
Mas sem os compatriotas
Que não pensam do jeito que eles pensam.
E no dia da pátria, vão às ruas.
Não pelo orgulho de ser de onde é.
Mas pelo prazer de intimidar
Os irmãos que não conseguem amar.
Marcharão orgulhosos.
À espera de um tanque fumacento,
Que de canhão em riste,
Cobrirá com um estrondo
Os raios fúlgidos do sol da liberdade.
Enquanto isso,
Outros brasileiros,
Com olhos e ouvidos atentos,
Ao grotesco espetáculo assistem.
Entre a incredulidade e o espanto,
A indignação e a aceitação,
A coragem e o medo,
O amor e o ódio.
E sentem por dentro uma dor
Que não é dor, mas que dói. Dói muito.
Um revirar no bucho.
Um descabimento de uma coisa no peito.
Um sufoco que entala a palavra.
Um não sei de onde vem.
Nem pra onde vai.
Um não saber se sabe.
Nem o que sentir.
Mas sente.
E sente que dói. Dói muito.
Mas não é dor.
É só a tristeza que dá
Quando se sente que não dá mais.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
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