Silêncio e bolsonarismo

Rafaela Tagarela era o apelido na escola. E ela não ligava. Era tagarela mesmo. Assumida e orgulhosa. Depois, virou “comunicativa”. Uma virtude no mundo empresarial em que vive. Gostavam dela na escola, do mesmo jeito que gostam dela no trabalho. Por isso os amigos estão preocupados. Rafaela está calada. Quase muda. Diz só o básico, aos monossílabos. Algo não vai bem com ela.

“Não está triste. Não, não é mesmo tristeza”, concluem os amigos aos sussurros no café. “Parece cansaço. Será? Mas ela é tão ativa! Sim, mas fim de ano é assim mesmo, todo mundo fica cansado de cansaço do ano todo. Abatida? Será isso? Abatida de quê? Mas abatimento não é o mesmo que cansaço? Não é a cara que o cansaço tem?”. Os mais íntimos tentaram puxar conversa com ela, para alimentar o diagnóstico. Desconversou. Fechou-se, calada.

Rafaela nem sabe bem o que está sentindo. Está pensativa e observadora. Mais que o habitual. É como se a diminuição do trabalho da boca desse mais espaço para os olhos. Ou, talvez, tenha sido o oposto, os olhos calaram a boca. Calada pelo que viu e vê.

Todo mundo fala muito. Todo mundo tem palavra inspiradora, ainda que tomada de empréstimo ou roubada dos outros em que dizem coisas bonitas de se dizer, mas sem a beleza do dito. Ou então, discurso de indignação. Para lacrar ou mitar. Para aparecer. Para ser visto. Como ninguém chama a atenção sendo banal, exagera-se o ordinário. Fala-se de uma salsicha que, do cachorro-quente, precipitou-se ao chão como se fosse uma tragédia fatal. Só para chamar a atenção.

Desesperadamente, mente-se em sentimentos e fatos. Cria-se uma teia de mentiras e fantasias que dão ao real uma tessitura fantástica. Como num mundo mágico, em que tudo é possível, tudo é verdade, tudo é convicção profunda e todo mundo que discorda é inimigo. O mundo, na tagarelice, tornou-se falso, violento e triste. E Rafaela se abate com isso. Mesmo tendo o hábito de só postar fotos de passeios e encontros com amigos para dizer que gosta de lugares e amigos, ela se sente culpada pelo desvario do mundo. Culpada por interagir. Por usar, ao exagero, da ferramenta que parece ter enlouquecido o mundo. Por prudência, calou-se.

Calada, vê gente em roda, como se fosse uma ciranda, chamar extraterrestres piscando seus celulares na cabeça. Outros, cantando o hino nacional em continência a pneus de caminhão. Ou ainda pessoas fechando rodovias, incendiando carros e tentando arremessar um ônibus de uma plataforma diante de policiais entre a conivência, inércia e uma ou outra ação pontual, mas sem prisões ou quaisquer outras palavras ou ações que digam que a loucura é louca, o erro errado ou o crime criminoso. E assim, segue tagarelice das certezas infundadas confundindo loucura e sanidade, mentira e verdade, crime e honestidade, mal e bem.

O falar virou a forma do existir num vazio. E fala-se muito, como se isso fosse existir muito. Ou ser feliz, o que dá no mesmo. Fala-se para existir para ou outro, mas não com o outro. Crentes que fazem a si mesmos apenas por falar de fé, mas sem a sentirem ou praticarem. Para serem vistos como gente de bem, mas sem o Bem. Vira-se padre, terapeuta ou especialista em qualquer coisa só na tagarelice. Convive-se com padre sem igreja, militar sem tropa, político sem partido numa multidão sem sociedade.

Enquanto isso, silenciosa, Rafaela se fecha nos seus pensamentos. Para pensar e se proteger de uma multidão perdida. Para buscar, no silêncio, o sentido que caberia num sorriso verdadeiro e a realidade que caberia num abraço afetuoso.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli

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