Simão e o PIX

Simão gosta de pescar. É capaz de passar horas apenas observando o correr do rio à espera de algum peixe. Sem ansiedade. Coisa de paciência. Simão acha que a magia da pescaria está na espera e não na fisgada.

Mas pescaria é coisa de domingo. Nos outros dias, sua paciência é diferente. Tem correria e incerteza. Não sabe se vai ganhar para pagar os custos, as contas, a vida. Nestes muitos dias, sua incerteza é como a dos peixes. Não sabe se vai comer ou ser comido.

Trabalha de carteira assinada. Ganha mal e ouve desaforo. Não gosta da empresa, não gosta do patrão e detesta o salário. Não dá conta de pagar as contas. Mal dá para duas refeições por dia. Completa a renda entregando comida de bicicleta.

Perguntado o que faz da vida, diz que é empreendedor. Pescador nas horas vagas. Não gosta do aplicativo, nem do pouco que ganha. Mas não tem patrão e sente que o pouco que ganha é arrancado por ele mesmo. Não é que nem o salário, que lhe pagam como se fosse um favor. Não tem aquela gente de RH olhando com cara de tédio em entrevista de emprego. Pode parar para comer e ir ao banheiro sem ter que pedir permissão. Definitivamente, para Simão, ser empreendedor é sentir-se menos escravo, ainda que pobre e cansado de trabalhar como um escravo.

A única coisa que Simão detesta mais do que o patrão arrogante na empresa e cliente babaca na entrega é o Estado. O que ele mais vê do Estado é a polícia, de quem, vez ou outra, toma um esculacho. Uma vez, tomou um tapa tão forte na orelha que estourou o tímpano e o fardado ainda lhe levou o dinheiro do dia.

Sindicato, para Simão, também é Estado. Já lhe explicaram a diferença. Entendeu o que lhe disseram. Mas quem lhe explicou não entendeu o jeito de Simão pensar. Ele não vê o meio, a finalidade, o propósito ou qualquer outra coisa que as pessoas lhe apresentam quando lhe falam de política, instituições etc. Ele só vê o efeito. E o Estado é coisa que gera nele tapa na orelha e dinheiro tomado.

O fiscal quer um papel senão não deixa trabalhar. Fiscal é como o entediado do RH, que se não for com a cara do sujeito, não deixa trabalhar. Simão virou empreendedor para não ter que passar por isso, mas não tem jeito. O Estado lhe faz passar por isso e ainda cobra taxa.

O sujeito do sindicato diz que defende os direitos de Simão, mas ele está cansado de ver direito só no papel. Na prática, trabalho de carteira assinada e salário de fome é escravidão com outro nome. Mais do que direito só no papel, ele quer dinheiro e que não lhe encham o saco.

Tentou explicar isso para o sindicalista. Ouviu que era alienado. Simão não sabe bem o que significa alienado, entendeu que era outro jeito de lhe chamar de burro. De um político, ouviu que os direitos não saem do papel porque ele e outros que nem ele não reivindicam. Simão sabe que só diz uma coisa assim quem pode reclamar de alguma coisa sem medo de tomar tapa da polícia.

Num domingo, viu uma história de fiscalizar PIX que lhe perturbou os pensamentos durante a pescaria. “Quem declara tudo direitinho para a Receita não tem com o que se preocupar. A medida é para pegar sonegadores”, dizia o engravatado na internet.

“Já conheço essa história, vou me dar mal”, pensou Simão. Com a desconfiança de quem está cansado de apanhar. Com a sabedoria de quem percebeu que a ordem das coisas funciona para que ele trabalhe muito, ganhe pouco e apanhe se reclamar. Com a paciência de pescador, que sobrevive na esperança de um dia poder, enfim, viver.

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Ilustração: Mihai Cauli 
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