A história nos mostra um determinado padrão nos ciclos de tecnologia radicais. Sua natureza básica tende a se repetir. E o Brasil vai ignorar esse padrão como farsa ou como tragédia?

Os anos 70 do século passado marcam o início do processo de fim da hegemonia da política do estado de bem-estar social. Os três eventos de economia política que marcaram esse processo foram a desvinculação do dólar ao ouro, a crise da OPEP de 1973 e a entrada no mercado de microprocessador, um ‘computador em um chip’. Esses três eventos anunciaram a mudança de longo prazo na economia global passando da produção em massa, baseada em petróleo barato, para uma ‘economia da informação’ baseada em microeletrônica barata.
Mudanças muito grandes na tecnologia implicam não apenas o rápido surgimento de algumas novas indústrias, mas também um crescimento mais rápido por um período prolongado, além do rejuvenescimento de muitas indústrias antigas, que encontraram maneiras de utilizar as novas tecnologias e fazer alterações na sua organização e gestão. Significa uma nova forma de pensar o sistema produtivo, sua organização, tecnologia e interdependências. Uma mudança do paradigma técnico/econômico mostra como cada tecnologia revolucionária torna-se amplamente aceita. Essa mudança, ao afetar toda a economia, implica o uso generalizado de novos insumos.
O último quarto do século XX apresentou a ascensão de duas forças: a revolução da informática e a predominância dos mercados financeiros. Muitos cantaram as virtudes de um para aumentar a produtividade e do outro por desencadear o impulso pela riqueza que move a economia para frente. O século XXI foi inaugurado com reivindicações sobre o advento de uma ‘nova economia’ caracterizada pelo florescimento de ambas as forças, do crescimento geral e da economia capitalista como forma de organização da produção e do sistema político liberal como vencedores da Guerra Fria.
O colapso da bolha da Internet e a recessão que se seguiu abalaram essas crenças e levaram à dúvida e confusão. Explosões de produtividade semelhantes e de excitação, levando à euforia econômica e subsequentes colapsos de confiança, já ocorreram juntos antes. Eles estão inter-relacionados e interdependentes. Compartilham a mesma causa básica que são a natureza do sistema capitalista e de seu funcionamento. Originam-se da forma como as tecnologias evoluem em revoluções, da maneira peculiar pela qual esses grandes surtos de criação de riqueza potencial são assimilados pelo sistema econômico e social e da separação funcional entre o capital financeiro e o capital produtivo.
A concepção predominante nos círculos da elite política e econômica do capitalismo é de que todos os frutos das revoluções tecnológicas, que ocorrem a cada meio século, são amplamente colhidos com uma defasagem de tempo. Duas ou três décadas de adaptação e assimilação turbulentas, desde o momento em que o conjunto de novas tecnologias, produtos, indústrias e infraestruturas causam seu primeiro impacto no início de uma nova ‘era de ouro’ com base neles.
Para cada revolução tecnológica, esse intervalo de tempo é caracterizado por fortes divergências nas taxas de crescimento das indústrias, países e regiões, bem como um agravamento das tendências de distribuição de renda que prevaleciam anteriormente.
Historicamente, essas décadas trouxeram incerteza e instabilidade no setor financeiro, no qual os sucessos e inovações brilhantes dividiram o palco com grandes manias e fraudes ultrajantes. Também terminaram com recessões e depressões, que mais tarde cederam, através do estabelecimento instituições apropriadas, para um período de prosperidade generalizada, sobre o potencial desse conjunto específico de tecnologias.
Apesar da singularidade inquestionável de cada período histórico, há uma certa sequência de eventos, um padrão que se repete em cada período de surgimento de tecnologias e inovações radicais, que mudam o paradigma técnico/econômico anterior.
A plena implantação da enorme riqueza potencial trazida por cada revolução tecnológica exige, a cada vez, o estabelecimento de uma institucionalidade social e econômica adequada. A existente estrutura institucional, criada para lidar com o crescimento com base no conjunto anterior de tecnologias, é inadequada para o novo paradigma. Assim, nas primeiras décadas de instalação das novas indústrias e infraestruturas há um descompasso crescente entre o técnico e econômico e o social e institucional, bem como uma dissociação do sistema econômico, entre as novas e as velhas tecnologias. O processo de restabelecer uma boa compatibilidade entre esses sistemas e criar condições para a plena implantação do novo potencial produtivo é complexo, prolongado e socialmente doloroso.
O capital financeiro desempenha um papel crucial durante todo o tempo. Primeiro, apoia o desenvolvimento da revolução tecnológica. Nesse processo, contribui para aprofundar o descompasso e a instabilidade entre a necessidade de nova institucionalidade e a velha instalada. Essa dissonância pode desencadear uma crise econômica. Mais tarde, uma vez que a correspondência é alcançada, o capital financeiro se torna um agente contribuinte no processo de implantação dessa revolução.
A difusão de inovações radicais é inevitavelmente uma questão de investimento nessas novas tecnologias como motores da economia e não pode acontecer sem financiamento público e privado. No entanto, esse relacionamento tem sido consistentemente ignorado. Os papéis do capitalista produtivo, financeiro e do Estado são interdependentes e impulsionam a inovação.
A ausência de estruturas de financiamento desse tipo tende a ocorrer quando o capital financeiro praticamente se dissocia da economia real e decola por conta própria. No entanto, a inovação em serviços financeiros, que não fazem ligações com as tecnologias específicas do período, está no centro das crises cíclicas do capitalismo.
Em novembro de 1971, foi lançado o primeiro microprocessador da Intel, o precursor do computador em um chip. Foi a explosão de um novo universo, o da computação onipresente e das telecomunicações digitais. Os chips eram poderosos e baratos. Naquela época, poucas pessoas tinham ouvido falar de capital de risco (venture capital). Embora muitos cidadãos nos EUA tivessem ações e títulos, poucos seguiam as mudanças diárias no mercado de ações. A palavra ‘derivativo’ estava confinada à matemática. A maioria das pessoas de classe média mantinha seu dinheiro no banco ou em sociedades de poupança e empréstimo. Os milionários self-made, embora um elemento central do sonho americano, eram poucos e distantes entre si.
Nas décadas a seguir, tudo isso mudaria radicalmente. Milionários abundariam e as finanças se tornariam a preocupação central das pessoas com o antigo e a nova riqueza. No final da década de 1990, mesmo as pessoas com salários modestos haviam se transformado em ‘investidores’ esperançosos.
A história nos mostra um determinado padrão nos ciclos de tecnologia radicais. A siderúrgica Bessemer de Andrew Carnegie em 1875 marcou o início da idade do aço e engenharia pesada – uma enorme transformação que mudou a economia de todo o mundo, com comércio transcontinental e viagens por ferrovia e navio a vapor, acompanhados de telégrafo internacional e eletricidade. O crescimento dos mercados de ações nas décadas de 1880 e 1890 foi agora, não apenas em ferrovias, mas também na indústria com base nacional, mas cada vez mais internacional. As crises aconteceram de diferentes formas nos EUA, na Argentina, na Itália, na França e em muitas outras partes do mundo.
Henry Ford foi o personagem central em um evento semelhante em 1908. O Modelo-T de baixo custo, com seu motor de combustão interna movido a gasolina barata, abriu o mundo do automóvel, da produção e do consumo de massa.
Em meados da década de 1920, o mercado de ações de Nova York era percebido como o motor que movia a economia americana e até mesmo a do mundo. No final da década de 1920, até mesmo viúvas, pequenos agricultores e os engraxates estavam colocando seu dinheiro naquele cassino glorificado. A crise acidental foi inesperada. A recessão e a depressão seguintes foram excepcionalmente profundas e prolongadas.
Nas décadas de 1980 e 1990, os gênios financeiros apareceram às dezenas e os investimentos em ações ou imóveis pareciam quase garantidos para crescer em um mercado em alta, sem fim. Grande riqueza para os jogadores foi o resultado e surgiu o mantra da exuberância irracional.
Essa sequência já havia acontecido três vezes antes de uma maneira semelhante. Uma década após a eclosão da primeira Revolução Industrial, o mundo da mecanização na Inglaterra levou à rápida extensão da rede de estradas, pontes, portos e canais para apoiar um fluxo crescente de comércio[1]. Houve a mania do canal e, mais tarde, pânico do canal. Cerca de 15 anos depois que a linha ferroviária Liverpool-Manchester inaugurou a Era do Vapor e das Ferrovias, houve um boom de investimento surpreendente no capital de empresas que construíam ferrovias, uma verdadeira ‘mania ferroviária’ que terminou em pânico e colapso em 1847.
Cada revolução tecnológica levou à substituição massiva de um conjunto de tecnologias por outras, seja por substituição pura e simples ou por meio da modernização dos equipamentos, processos e formas de operação existentes. Cada um envolvendo profundas mudanças nas pessoas, nas organizações e nas competências, como um furacão de quebra de hábitos, levando a um período explosivo nos mercados financeiros.
O investimento nas novas indústrias é realizado por novos empreendedores. Esses jovens magnatas financeiros criam um redemoinho com enormes quantidades da riqueza do mundo para realocá-las em áreas mais aventureiras ou em mãos imprudentes: seja para especulação imobiliária ou em qualquer coisa que seja possível na época; seja para comprar ativos existentes e outros para novos investimentos. Uma parte disso vai para novas indústrias, outra para expandir a nova infraestrutura e outra para modernizar todas as indústrias estabelecidas, mas a maior parte é movida por um frenesi de ganhar dinheiro, o que cria inflação de ativos e fornece uma atmosfera de jogo dentro de uma bolha em constante expansão. Finalmente, vem o colapso. Mas quando isso acontece, a mudança foi feita. Novas indústrias cresceram, uma nova infraestrutura entrou em vigor; novos milionários surgiram.
A ascensão da inteligência artificial (IA) generativa desencadeou uma corrida global para construir fábricas de semicondutores e centros de dados (data centers) para alimentar as vastas demandas de energia dos grandes modelos de linguagem. Mas, à medida que o investimento aumenta e as avaliações econômicas disparam, um crescente conjunto de evidências sugere que a especulação financeira está superando os ganhos de produtividade. A noção de que estamos testemunhando uma “bolha de IA” passou das margens do debate público para o mainstream. A conversa sobre bolhas está estourando em todos os lugares.
Tal como aconteceu com as bolhas especulativas anteriores, o aumento dos volumes de investimento na IA alimenta avaliações crescentes, atingindo máximos históricos nos mercados público e privado. Os chamados gigantes da tecnologia “Magnificent Seven” – Alphabet, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla – dominam o S&P 500, cada um com uma capitalização de mercado acima de US$ 1 trilhão, e a Nvidia é agora a primeira empresa de US$ 5 trilhões do mundo.
No mercado financeiro privado, a OpenAI planeja levantar US$ 30 bilhões com uma avaliação de US$ 500 bilhões do SoftBank, o investidor mais exuberante da era pós-2008. Notavelmente, essa rodada de captação de recursos ocorreu mesmo quando as perdas da empresa totalizaram US$ 5 bilhões em 2024, apesar de US$ 3,7 bilhões em receita, com sua queima de caixa prevista para totalizar US$ 115 bilhões até 2029.
Muito parecido com os ciclos especulativos anteriores, este é marcado pelo surgimento de mecanismos de financiamento criativos. Quatro séculos atrás, a Mania das Tulipas Holandesas deu origem a contratos futuros de bulbos de flores. A crise financeira global de 2008 foi alimentada por derivativos exóticos, como obrigações de dívida com garantia sintética e swaps de inadimplência de crédito. Hoje, uma dinâmica semelhante está ocorrendo no ciclo de financiamento circular que liga fabricantes de chips (Nvidia, AMD), provedores de nuvem (Microsoft, CoreWeave, Oracle) e desenvolvedores de grandes modelos de linguagem (LLMs), como a OpenAI.
O padrão dos ciclos históricos tende a se repetir em sua natureza básica, embora de forma diferente. E o Brasil vai ignorar esse padrão como farsa ou como tragédia?
Nota:
[1] Importante realçar a relação entre o desenvolvimento da infraestrutura e os investimentos em inovação. Frequentemente, os fundamentalistas da tecnologia e da inovação esquecem dessa crucial relação de abertura de espaço para os retornos crescentes na produção, escala e escopo, e na redução dos custos de distribuição. O artigo básico para entender essa relação é Freeman, C. Technological infrastructure and international competitiveness. Industrial and Corporate Change, Volume 13, Number 3, pp. 541–569.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Uma nova bolha vem por aí?”, de Adhemar Mineiro.






