Esses tempos difíceis significam não só um exercício de paciência – com as famílias, entre amigos, vizinhos e o mundo, com todos um pouco ensandecidos e convictos de uma ideologia estranha. E com um grau de convencimento profundo nesse pensamento que nos perguntamos onde estava antes, porque ninguém foi capaz de percebê-lo.

Esses tempos são também um esforço de reflexão, porque se tornou difícil entender o que se passa à luz de nossos conhecimentos anteriores e de algumas seguranças que jurávamos existir. E a pergunta é: como as ideias fascistas, extremistas, belicosas, belicistas ganharam terreno tão vorazmente? Opor-se ao que não entendemos pode ser uma tarefa árdua.

Lidamos com um movimento de extrema direita no Brasil e no mundo, que muito bem orquestrado, com discursos, posturas e comportamentos que se repetem em todos os lugares.

Essa extrema direita tem características semelhantes ao fascismo e a outros movimentos supremacistas, mas tem também diferenças políticas e ideológicas com o passado e nos diversos países. O movimento da extrema direita no mundo obedece hoje a uma outra lógica.

Há um poderoso cunho fundamentalista: cristão no Brasil, de reforço ao catolicismo tradicionalista em outros países.

A extrema direita vem em um movimento eleitoral global ascendente, que pressupõe ampla capacidade de convencimento. E parece infensa ao contraditório, perdendo relativamente pouca popularidade, o que sugere que toca em temas importantes para as pessoas.

Já a esquerda, em todos os seus matizes, sente-se perplexa, pois não somente é pouco escutada, como vê ruírem pressupostos republicanos, de laicidade e de direitos – sob o silêncio, quando não sob a aprovação das populações.

Ao mesmo tempo, e especialmente em países como o Brasil, as institucionalidades mostram-se tal como sempre foram: frágeis e dominadas por uma elite e/ou por aspirantes a elite que estão dispostos a várias transgressões e silêncios para manter o status quo, colaborar com a corrente ou apenas sobreviver.

No Brasil, sob o governo anterior e nos governos estaduais de extrema direita, prevalece o desmonte das políticas de Estado – econômicas e sociais – e a privatização dos patrimônios públicos naturais e empresariais.

Qual a lógica de tudo isso?

Não é de hoje que a ânsia vem sendo cultivada no mundo. As promessas de felicidade são insistentes, permanentes, poderosas, vestidas da brilhante parafernália do consumo e do sucesso, ininterruptamente alçadas aos nossos olhos e às nossas almas. A ilusão nunca foi vendida tão barato. E jamais esteve tão inalcançável.

Também não é de hoje que o medo se espalha pelas sociedades em todo o mundo. Há uma sombra que se insere em todos os interstícios das vidas e nos controla pouco a pouco. Às vezes violentamente. Impede, mata, lança na pobreza. Mantém na miséria. Espalha ilusões frustradas.

Obviamente é o capitalismo, mais especificamente, são as grandes corporações. O avanço corporativo no planeta é implacável. No controle da produção, da distribuição, do consumo. Na usurpação dos bens naturais. Na intervenção sobre os serviços antigamente públicos, como educação e saúde, por exemplo, e sobre as grandes políticas sociais, como a previdência. E agora, tornam-se os senhores da informação (e da contrainformação, vulgo fake news). E assim por diante, insaciáveis.

Mas, onde estão, quem vê as grandes corporações e seus bi, tri, arquilionários? Como deuses, as corporações são onipresentes, mas são só visíveis por suas obras e frutos. Como deuses, decidem a sorte da humanidade, criando abundância e crise, paz e guerra, vida e morte, inclusão e exclusão.

Assim que se sente medo, mas não se vê a cara do agressor/benfeitor, exceto por seus próceres, governos, políticos, facções. Há temor pela vida e pela segurança – na infância, na juventude, na vida adulta e na velhice, pois todos os ciclos dependem de um fator invisível aos olhos, mas próximo da mente e do coração. E que informa às pessoas que seus dissabores estão ligados aos próprios méritos. No entanto, são sensíveis à ação de forças fora de controle, pois que invisíveis.

A esquerda sempre entendeu o trabalho das corporações e, pela extrema dificuldade de destruí-las, optou por buscar seu controle e domesticação. Também a direita esclarecida buscou colocar freios ao gigantismo e ao poder anônimo das multinacionais/supranacionais. Para as pessoas alheias aos movimentos sociais e políticos, nada disso é muito claro. E, de fato, as regras fracassaram miseravelmente quando se tratou de impor limites às gigantes do mundo.

Elas detêm o poder econômico e grande parcela, senão a parte essencial, do poder político. Usam as institucionalidades e os meios de comunicação a seu bel prazer. Não é fácil descobrir de onde vêm as mudanças e quem planeja e realiza os ataques.

Por isso, a extrema direita trata de dar rosto aos “inimigos” que atentam contra a tranquilidade das pessoas, para aliviá-las de seu incrível mal-estar. São os migrantes, negros, mulheres, LGBTQIA+, comunistas, etc… E mostra o todo poderoso deus fundamentalista que exige méritos – a preservação da família tradicional, a rejeição aos opositores, a defesa da livre iniciativa e o patriotismo histriônico. Tomar a vida e a justiça nas próprias mãos. Defender-se. Defender-se. Defender-se.

A extrema direita também sonha em recriar o mundo da iniciativa individual – mas para os poucos merecedores. Não é propriamente favorável às grandes corporações. No seu mundo idealizado, as pessoas retomam a iniciativa e vencem por seu esforço. Por isso não precisamos de Estado. Os pobres devem escolher entre se esforçar ou perecer.

A proposta política da extrema direita é ocupar o lugar político das grandes corporações. Retomar o controle das trajetórias de vida pessoal e social, transformando o mundo em um lugar das pessoas de bem. O mundo que a extrema direita quer criar – pequeno, separado, defendido, controlado – é, em tudo, oposto ao capitalismo global, que não vê fronteiras ou preferências sexuais. Não por liberalismo, é certo, mas porque o lucro não se importa com essas minúcias.

Essa promessa extremista, hipócrita na raiz, conversa diretamente com o ressentimento profundo dos que acreditaram nas virtudes da livre iniciativa. Nem o Estado, nem a Lei, nem as Instituições, muito menos os partidos e as organizações políticas entregaram o prometido: a abundância para nós, o que merecemos. Sonhos altruístas passam à categoria de esquerdismos ultrapassados, fantasmas do comunismo do século passado. Contam sim, as expectativas diferenciadoras, que estabelecerão, por fim, a ordem e o reconhecimento dos iguais e a exclusão, em definitivo, dos outros. A proposta de um mundo sob nosso controle – e não sob controle deles – é tentadora e ganha adeptos, porque responde a alguns fortes anseios que o mundo moderno não soube e não irá suprir. A extrema direita inverte os discursos e vende liberdade, enquanto organiza a dominação por meio dos valores estreitos que, de fato, prega.

No entanto, as armas do fascismo emergente – construção de unidade política manipulando o medo e fabricando os diferentes como inimigos, para angariar o apoio de vastas camadas empresariais e de populares insatisfeitos – não serão suficientes para o tamanho da empreitada. Fundamentalmente, porque trabalha no mesmo campo capitalista e, convenhamos, nesse quesito, as grandes corporações são melhores.

Para nós, democratas, progressistas, socialistas, reais comunistas e todos os livres pensadores, como se dizia antigamente, o trabalho é pensar estratégias e estabelecer ações que nos ajudem a resgatar a vontade de liberdade e a autonomia das pessoas, enterradas sob o fundamentalismo político e religioso. E estudar cuidadosamente como enfrentaremos o inimigo conjuntural – a extrema direita – e o inimigo real – o capitalismo irrefreável do século XXI.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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