A onda de intimidação e censura que se abateu sobre quem menciona o extremismo de Charlie Kirk, assassinado no dia 10 de setembro, não surgiu do nada. É o resultado de um projeto autoritário, concebido há muito por Stephen Miller, vice-chefe de gabinete da Casa Branca.

Ele detém o recorde de longevidade junto a Donald Trump, conhecido por usar e abusar de suas equipes. O vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, já tinha sido conselheiro político durante o primeiro mandato do presidente plutocrata. Ideólogo-chave do atual governo, o burocrata mais poderoso dos Estados Unidos está nos comandos do novo macarthismo, que se desenvolve agora descaradamente a partir dos mais altos escalões da República.

O assassinato de Charlie Kirk foi apenas um acelerador. Stephen Miller já tinha revelado seus planos em agosto. Passou os quatro anos do governo de Biden preparando uma ofensiva metódica contra o Estado de direito e a liberdade de expressão.

Charlie Kirk era, aliás, próximo de Stephen Miller, sobre quem declarou em janeiro de 2025 no New York Times: “Algumas pessoas da comitiva de Trump estão ali por conveniência política ou econômica. Mas Stephen, ao contrário, acredita profundamente no programa do presidente.”

Na segunda-feira, 15 de setembro, à frente do podcast do seu amigo assassinado, gravado na Casa Branca, o vice-presidente J.D. Vance invocou a memória de Kirk para encorajar os americanos a “denunciarem” qualquer pessoa que celebrasse a morte do líder dos jovens MAGA (“Make America Great Again”). Stephen Miller, visivelmente emocionado, prometeu mobilizar toda a força do governo federal na repressão das “organizações de esquerda” acusadas de serem responsáveis pelo assassinato de Charlie Kirk.

Devemos ter em conta o que Miller, hoje em dia o homem mais poderoso da Casa Branca depois de Trump, e o seu principal conselheiro, diz: “A última mensagem que Charlie me enviou, na véspera de o termos perdido, dizia que precisávamos implementar uma estratégia organizada para combater as organizações de esquerda que encorajam a violência neste país. [O que sinto agora] é uma imensa tristeza e uma imensa raiva […]. Ora, a raiva dirigida, virtuosa, é um dos motores de mudança mais importantes da história da humanidade.”

Um percurso ultra-conservador

“Vamos canalizar toda esta raiva”, prometeu, “para erradicar e desmantelar estas redes terroristas. Trata-se de um vasto movimento terrorista nacional. E com Deus como testemunha, utilizaremos todos os recursos à nossa disposição no Departamento de Justiça, no Departamento de Segurança Interna e em todo o governo para identificar, perturbar, desmantelar e destruir estas redes”.

Estas redes? A esquerda em sentido amplo. Em agosto, na Fox News, numa diatribe furiosa – o homem não fala, vocifera – Stephen Miller definiu o Partido Democrata como “uma entidade dedicada exclusivamente a defender criminosos empedernidos, membros de gangues, imigrantes ilegais assassinos e terroristas. O Partido Democrata não é um partido político. É uma organização extremista nacional”.

Tal como Charlie Kirk, Stephen Miller ingressou na política no liceu, multiplicando provocações e ultrajes, atraindo desde cedo a atenção do ecossistema midiático de direita. Na Universidade de Duke, conviveu com o supremacista branco Richard Spencer num clube estudantil “conservador”.

Chegando em Washington após ter concluído os estudos, Stephen Miller trabalhou inicialmente para uma das musas do Tea Party, Michele Bachmann, antes de se juntar à equipe do senador mais reacionário e racista, Jeff Sessions (Alabama). Este foi o primeiro eleito a apoiar a candidatura de Trump em fevereiro de 2016 (e viria a ser o seu primeiro procurador-geral).

Stephen Miller juntou-se desde o início à campanha do outsider nova-iorquino no início das primárias que, em poucas semanas, varreria o establishment republicano. “Miller traduz os instintos de Trump num programa ideológico coerente”, explicava recentemente Christopher Rufo, um soldado das guerras culturais imbuído da retórica nacional-conservadora.

Em poucos anos, Stephen Miller tornou-se o “novo Roy Cohn” de Donald Trump, nome dado em homenagem ao advogado ultra de métodos duvidosos, o único mentor conhecido de Trump. Ironicamente, Cohn tinha começado sua carreira com o senador Joseph McCarthy, a inspiração por detrás da caça às bruxas anticomunista dos anos 50.

Uma guerra jurídica organizada

Stephen Miller tornou-se o ideólogo de um trumpismo mais coerente do que o de Trump e, sobretudo, mais metódico: passou os quatro anos do “interregno” (mandato de Joe Biden) preparando o regresso do seu líder ao poder, aprendendo as lições do primeiro mandato e afiando as armas jurídicas destinadas a concretizar a sua visão distópica dos Estados Unidos.

A organização das “expulsões em massa” (deportações, segundo o termo inglês da plataforma do partido em 2024), a suspensão do habeas corpus (que garante que qualquer indivíduo possa contestar a sua prisão ou detenção perante um juiz se a considerar arbitrária), a utilização da Guarda Nacional no território dos Estados Unidos…: todos estes pontos são obsessões pessoais de Miller.

Em janeiro de 2021, enquanto outros se distanciavam de Trump após o ataque ao Capitólio, Stephen Miller fundou a America First Legal (AFL) para travar uma guerrilha jurídica contra o novo governo democrata. O grupo lançou mais de 100 processos contestando decisões do governo Biden e envolveu-se nas eleições de meio de mandato em 2022 através de anúncios transfóbicos.

Criado para levar a batalha para o terreno jurídico, como espelho invertido da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), que defende os direitos civis, o seu modelo, o America First Legal, arrecadou, desde 2022, 44 milhões de dólares, com destaque para a obtenção de fundos de Elon Musk, para quem foi a sua primeira incursão na política. A mulher de Stephen Miller, Katie Miller, trabalhou para o “Doge” de Musk até a sua desavença com Trump – desde então, lançou um podcast “para mulheres conservadoras”, cujo primeiro convidado foi… J.D. Vance. É um mundo pequeno.

O governo federal mobilizado contra a esquerda

Miller utilizou a AFL principalmente para estabelecer as bases jurídicas para a sua futura ofensiva anti-imigração, particularmente a violação deliberada do Estado de direito. Teve a ideia de usar a Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798 para organizar deportações em massa fora de qualquer processo legal. Já tinha detalhado tudo em 2023, incluindo a iminente luta contra a liberdade de expressão, numa entrevista ao New York Times.

Trump concorda, obviamente. Ele que em outubro de 2024 se dizia mais preocupado com a “esquerda radical”, “os comunistas e fascistas” do que com a China e a Rússia, sugeria que provavelmente seria necessário usar “a Guarda Nacional ou os militares” contra este “inimigo interno”. Este é o mesmo discurso, transposto para a Europa, que Vance proferiu em Munique, em fevereiro de 2025.

Esta retórica e a crescente onda de denúncias e demissões nos Estados Unidos contra os meios de comunicação social, os jornalistas e centenas de cidadãos comuns, são um eco direto da cruzada do senador Joe McCarthy contra os “comunistas” no início da década de 1950, utilizando o braço armado do FBI de Edgar Hoover e as audiências do Comitê de Assuntos Antiamericanos do Congresso.

Milhares de pessoas perderam o emprego, centenas foram presas, muitas abandonaram o país por já não poderem trabalhar – o mais famoso foi Charlie Chaplin. Esta onda de repressão política só foi travada quando McCarthy atacou o exército, tendo sido necessária a intervenção do próprio presidente, o general Eisenhower.

Hoje, o ocupante da Casa Branca é também o primeiro a designar os seus adversários políticos como inimigos. Uma das suas conselheiras mais próximas, a influenciadora Laura Loomer, que já tinha instigado as expulsões do Conselho de Segurança Nacional (NSC) em abril, descreveu o seu objetivo político da seguinte forma: “Tornar McCarthy Grande Novamente”…

Desde o assassinato de Charlie Kirk, 22 congressistas republicanos instaram o presidente da Câmara a estabelecer um comitê especial para investigar “o dinheiro, o poder e a influência por detrás do ataque da esquerda radical à América e ao Estado de direito”, ligando a sua morte a “um padrão de ataques coordenados por ONG, doadores, meios de comunicação social e autoridades”. Uma formulação que faz lembrar o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, a ponta de lança do macarthismo na década de 1950.

A ofensiva já começou: centenas de pessoas foram despedidas por publicações nas redes sociais, o Departamento de Estado negou centenas de vistos. O Washington Post despediu a sua primeira colunista negra, Karen Attiah, sem apresentar qualquer justificativa: a sua única publicação sobre Kirk é uma citação dele.

Stephen Miller via as eleições de 2024 como o ponto de inflexão para a civilização ocidental. Hoje, está à frente de um novo macarthismo, implantado com toda a força do governo federal, em nome da liberdade de expressão, contra a esquerda, designada como inimiga interna. (Publicado no Esquerda Net)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão para o português do Brasil: Celia Bartone
Leia também “Para quem se dirige a política industrial de Trump?”, de Luiz Martins de Melo.