Ao fim de uma tarde perdida entre palavras brutas e ideias vazias, Zoé pôs-se a andar sem saber para onde. As ruas estavam apinhadas de pessoas cansadas que se apressavam por descanso. Zoé as via como se fossem apenas sombras indo e vindo. Obstáculos dos quais se desvia desatentamente.

Ziguezagueou até a Praça Central. As ruas laterais lembravam rios por onde gente corria para despejar-se nos vazios da praça entremeados de jardins, bancos, coreto, malandros, vagabundos, vigias e vendedores de comidas e desejos. De lá, a maioria se apinhava nas paradas à espera dos ônibus que as levariam apertadas para longe dali. Outros, menos apressados, mais famintos, desgostosos de apertos ou da própria casa, ficavam por ali, convivendo e comendo o que há de se comer na rua.

Sem porquês para ir ou ficar, Zoé sentou-se num inseguro banco de plástico. Pediu um queijo coalho na brasa e um refrigerante. Mais para merecer o assento que por fome ou gula.

Aproximou-se um indiferente. Surdo. Só podia ser surdo. Com certeza ele ouvia o mesmo que Zoé. Os mesmos lamentos dos perdidos dali. As mesmas notícias tristes. Os mesmos desencantos, reclamações e histórias das pessoas que fazem graça das próprias desgraças. Ouvia, mas era como se não ouvisse. Não esboçava riso ou choro. Nem careta ou bufada de incômodo. Surdo por vontade ou teimosia. Talvez, fosse alguém tão cheio de si mesmo, que não caiba mais nada dentro. Nem um suspiro. Sem espaço para nada dos outros no imenso vazio de si. Vazio espalhado por todos os cantos da alma.

Mais afastado, mas ainda ao alcance dos ouvidos, Zoé apercebeu-se de um sujeito robusto e falador. De voz forte que combinava com o peito largo. Falando, trovejava certezas ecoantes pela praça. Dizia coisas estranhas. De pouco nexo. Conspirações complicadas. Interesses ocultos. Algumas, difíceis de se acreditar. Outras, impossíveis. Eram algo além da mentira. Mentira engana. Aquele palavrório não enganava. Antes, revelava quem fala. Negava fatos visíveis, como se cego fosse. Era cego que enxergava, mas não via nada além dos seus ressentimentos.

Entre o surdo e o cego, Zoé ficou muda. Muda que poderia falar, mas que não conseguia. Inútil se conseguisse. Não seria ouvida pelo surdo. Seus ditos seriam negados pelo cego. Muda por impotência. Por tédio daquela gente surda e cega. Por cansaço de falar ao vazio. Pelo desamparo moral de se perceber entre moralistas. Por solidão no meio de uma multidão de solitários.

Comeu o queijo coalho sem dar por si, absorvida em pensamentos incompletos. Pagou a mais para não precisar esperar a conta e sair logo dali. Retomou a caminhada mais sem rumo do que quando começou.

Como marinheiro perdido, Zoé olhou para o céu e deu de cara com uma lua imensa e amarelada. Sentiu inveja de seu esplendor, de sua placidez, de sua indiferença. Parou, fechou os olhos e tampou os ouvidos. Imaginou que, talvez, a paz daquela lua pudesse lhe devolver a voz calada pela indiferença de quem não vê e pela soberba de quem não escuta.

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Ilustração: Mihai Cauli

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