Ontem entrou em cartaz nos cinemas o filme “Ainda estou aqui”, baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles. O filme é a memória viva de uma época de engajamentos que trouxeram a democracia aos brasileiros. Hoje, dois dias depois das eleições americanas, ao verem estampados nos jornais o sorriso debochado de Jair Bolsonaro e as fotos de Trump e Putin, Trump e Netanyahu, Trump e Orbán …, as gerações que viram florir a democracia devem estar se perguntando se valeu a pena a luta por um mundo onde não haveria mais espaços para o surgimento destes advogados das trevas. Falando do livro que mais o emocionou neste ano, Abrão Slavutsky escreveu: “Também estamos aqui porque acredito no humanismo das amizades (…). Estamos aqui, pois somos humanistas, temos memória, não esqueceremos da morte dos que lutaram por liberdade e democracia. Também estamos aqui na luta pelo direito à vida e à justiça.”
O livro “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, tem quatro personagens centrais: seu pai, o ex-deputado federal Rubens Paiva torturado e morto pela ditadura no dia 21 de janeiro de 1971; sua mãe Eunice Paiva, que após a morte do esposo fez a faculdade de Direito e se tornou defensora dos indígenas e admirável advogada, criando sozinha seus cinco filhos; o autor Marcelo Rubens Paiva, que revela seu olhar sobre os pais e o nosso país; e, finalmente, a memória, que é o personagem onipresente em todo o livro, desde as primeiras linhas. O personagem principal do livro é Eunice Paiva, uma mulher de muitas vidas cuja última luta foi contra o Alzheimer, doença em que se vai perdendo a memória. Quando foi diagnosticada, o filho escritor decidiu iniciar seu livro para relatar quem foi a mãe que tanto orientou a ele como a suas irmãs e se revelou uma sábia.
Li o livro num fim de semana. Parei outras leituras para me dedicar ao livro que é uma continuação de “Feliz Ano Velho”, primeiro livro de Marcelo Rubens Paiva. Imagino que os humanistas vão ficar fascinados com o livro que inspirou Walter Salles a realizar o filme “Ainda Estou Aqui”. Fernanda Torres faz o papel da mãe de Marcelo, sendo que ela e o filme estão indicados ao Oscar.
Também estamos aqui, pois somos a memória viva do que ocorreu entre 1964 e 1985 no nosso querido, maltratado e torturado país. Ler “Ainda estou aqui” é recuperar o passado, e nós podemos nos unir nesse livro de memórias, pois a memória está já na primeira frase da primeira página: “Não nos lembramos das primeiras imagens e fatos da vida: do leite do peito, das grades do berço…”. O livro navega pelas memórias do autor quando tinha 15 anos e viu seu pai sendo preso, e no dia seguinte sua mãe e a irmã mais velha. Aprendi cedo a frase sempre repetida “o passado ainda é o passado”, uma verdadeira ordem do quanto é preciso referenciar a memória. Em Psicanálise há uma expressão, “marcas mnêmicas”, que são marcas na memória – marcas que são inconscientes e essenciais. No livro, a memória é a nível consciente, e como há doenças em que ela se perde, e como uma sociedade pode desprezar a memória. Já as marcas mnêmicas aparecem transformadas nos sonhos, irrompem nos atos falhos, nas piadas, ou através das associações livres. Portanto, a Psicanálise tem tudo a ver com a memória recordada, esquecida, memória que marca e nos constitui pelas identificações.
Há páginas do livro em que se pode chorar, como aquela em que Marcelo imagina seu pai morrendo, e se recrimina por não ter se exilado com a família. “Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que põe tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras, Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Baiu… Perdão. Não verei mais vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês…”. O filho escritor imagina o pai, de 41 anos, se lamentando diante das grandes perdas, já vendo a morte. Li o livro não tanto por uma questão política, mas sim por humanismo, pois não podemos ser indiferentes, frente a um país que assassina negros, indígenas e amantes da liberdade.
A ditadura brasileira adotou a tática do desaparecimento político, copiada depois pelas ditaduras do Chile e da Argentina. É a mais cruel das mortes. Mata-se a vítima e condena-se a família a uma tortura psicológica, pois a vida continua, mas se convive com o sentimento de injustiça. Só em 2014 o quebra-cabeça da família Paiva foi completado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nos 50 anos do golpe militar e pela Comissão da Verdade.
Quem mais se destaca no livro é a mãe do escritor, Eunice Paiva, que como advogada passou a defender os direitos dos indígenas às suas terras. Estabeleceu, a partir de debates, amizades com Ailton Krenak, Dalmo Dallari, entre outros. Passou a ser definida como assessora jurídica da Comissão Pró-Índio, sendo combativa, exigindo a demarcação das terras indígenas. Em julho de 1984, foi convidada a representar o Brasil no Congresso Mundial das Populações Nativas em Estrasburgo; depois passou a assessorar o Banco Mundial, que só dava financiamento na Amazônia se o meio ambiente e o direito indígena fossem respeitados. Marcelo Rubens Paiva escreve ao final do livro que sua mãe nunca sentiu pena de si, nem quando conviveu com sua doença degenerativa do Alzheimer.
Nenhum livro nesse ano me emocionou mais do que “Ainda estou aqui”. Escrevi “também estamos aqui” porque acredito no humanismo das amizades do Facebook, e também chegou agora em novembro o filme baseado nesse livro. Estamos aqui, pois somos humanistas, temos memória, não esqueceremos da morte dos que lutaram por liberdade e democracia. Também estamos aqui na luta pelo direito à vida e à justiça. Por fim: a cultura e as artes estão sendo duramente atacadas nos últimos anos, e os jornais eliminam os cadernos culturais, pois a elite está a cada ano mais insensível e pobre. Precisamos divulgar livros, filmes, danças, artes nas redes sociais para não sucumbirmos com a mediocridade. Vamos lembrar, porque “Também estamos aqui”.
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Ilustração: Mihai Cauli
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