Tenho surdez e uso próteses auditivas desde 2013, quando decidi adquiri-las para enfrentar a defesa no doutorado. Fiquei com medo de ser prejudicada por não conseguir ouvir direito a pergunta ou as críticas da banca.

No dia em que experimentei as próteses pela primeira vez, chorei de soluçar. A fonoaudióloga tentou me acalmar. Disse que eu me acostumaria. Sou míope e sempre usei óculos. Pensei, antes de colocá-las, que ouviria com as próteses como vejo com as lentes.

Ledo engano.

Ouvir com aparelhos auditivos não é o mesmo que enxergar com óculos. O som parece todo microfonado como se saísse de um radinho de pilhas.

Mais uma coisa que você não sabe: um ouvido bom escuta em infinitas frequências. Quando apresentamos surdez moderada, não perdemos em todas elas de forma igual. Por mais modernos que sejam os aparelhos, eles não conseguem amplificar somente o que nos foi subtraído por doença, genética ou acidente. Resultado? Ouvimos com as próteses alguns sons muito altos e distorcidos.

Não são poucos os casos de pessoas que desistem de usar aparelhos e muito menos é pequeno o número de seres humanos que perdem a audição cedo. Então, é muito comum pessoas como eu se isolarem.

A surdez moderada é uma deficiência que incomoda muitas pessoas com as quais conversamos. Pedimos para repetir a frase. Percebemos que falar a mesma coisa duas vezes está longe de ser algo prazeroso. Irritamos muita gente por não ouvirmos bem e meu deus como é triste alguém se sentir importunado por algo que não é a nossa culpa. Além disso, viramos motivos de piada quando compreendemos algo atravessado.

Com os aparelhos, entendemos melhor. É, porém, extremamente cansativo ouvir de forma amplificada ruídos irritantes. Se estou com as próteses na rua e, por exemplo, passa um carro de bombeiro ao meu lado com a sirene ligada, sinto aflição e angústia como aqueles que se deparam com um rato correndo ao seu encontro.

Encontrei com uma conhecida que também colocou próteses recentemente e ela me narrou o quanto o barulho do chinelo arrastando no chão está deixando ela descompensada.

Tenho terminado o meu dia exausta por ter que lidar com tantos sons perturbadores por conta das próteses auditivas. A única vantagem é que posso tirá-las. Ler no silêncio tem suas vantagens. Dormir, muito mais.

Não vou à praia e nem à piscina há anos porque meus aparelhos não são à prova d’água. Quando chove e estou na rua, tiro minhas próteses para protegê-las e entendo muito menos qualquer frase que seja dirigida a mim. E se estou com elas em um lugar fechado e seguro quando lá fora cai uma tempestade, o ruído da chuva de fundo ganhou outra conotação que não tem nada de agradável.

Tenho surdez, mas escuto. Há quem tenha surdez severa, quem nunca tenha ouvido um som, quem já ouviu e perdeu toda a audição em algum acidente, quem não ouve de um ouvido, enfim, há de tudo e sei que não somos poucos na sociedade.

Falar “eu sou surda” não é uma coisa simples em terra de ouvidos perfeitos e pessoas impacientes que se acham perfeitas. Há muito mais gente com surdez do que vocês possam imaginar. O preconceito faz com que elas omitam a dificuldade de ouvir.

No mais, as próteses são caríssimas e, mesmo sendo fornecidas pelo SUS, a fila é longa. Para ter aparelhos mais discretos e modernos, é necessário pagar muito por eles.

Sigo me adaptando como fazem as pessoas inteligentes (Beijo,Piaget).

Estar nas ruas, nas salas de aula, em manifestações, no palanque ou em plenárias é um desafio que tenho enfrentado, modéstia à parte, com certa bravura.

Por que estou contando tudo isso? Porque outro dia a minha caixa de aparelhos caiu no metrô quando fui pegar algo na minha bolsa. Eu não estava com eles porque o barulho do metrô é chato e não estava conversando com ninguém. Uma pessoa catou tudo que tinha se espalhado no chão e me devolveu.

Morri de vergonha na hora.

Chegando em casa, refleti sobre o que passei. Não posso me permitir me sentir mal por ser como sou.

Contar para todo mundo o que aconteceu e como tenho lidado com essa deficiência é uma forma que encontrei de me perdoar por ter desejado me esconder por um momento. Prometi a mim mesma, desde o primeiro dia que coloquei esse troço nos ouvidos, que não ficaria constrangida por ouvir com ajuda.

Sou surda, uso aparelhos auditivos e está tudo bem ser desse jeito.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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